Em um gesto raro e significativo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva publicou, em 10 de julho de 2025, um artigo simultaneamente nos principais jornais da França, Espanha, Portugal, Alemanha, Itália, Japão, China, Argentina e México, intitulado: "Não há alternativa ao multilateralismo". Mais do que um posicionamento diplomático, o texto é um manifesto pela reconstrução do pacto civilizatório em ruínas.
O que está em jogo não é apenas a falência das instituições internacionais fundadas em 1945, mas o surgimento de um novo tipo de dominação global, silenciosa e eficaz: a dominação algorítmica. Os velhos impérios usavam canhões; os novos usam dados. O poder do software substitui o poder do exército. A manipulação da mente coletiva substitui a ocupação territorial. Vivemos sob a sombra da guerra cognitiva.
A nova guerra é travada na consciência
A guerra cognitiva não precisa de tanques. Ela se infiltra nas redes sociais, nos sistemas educacionais, nas inteligências artificiais, nos influenciadores, nos memes, nas fake news. Ela tem por objetivo controlar a percepção, os afetos, os valores e os comportamentos, não por coerção, mas por sedução, repetição e invisibilidade.
É nesse contexto que o artigo de Lula ganha um sentido ainda mais profundo: ao denunciar a falência do multilateralismo, ele também exige o fim da hegemonia de um modelo único de desenvolvimento, de pensamento e de tecnologia, um modelo centrado na supremacia digital do Norte Global.
Multilateralismo em colapso, software power em ascensão
Enquanto a ONU, a OMC e os acordos climáticos perdem força, cresce o poder das plataformas privadas que hoje controlam a infraestrutura da comunicação global: Google, Meta, Amazon, Microsoft, OpenAI, X (ex-Twitter), TikTok. Esses atores não apenas operam mercados; eles modulam realidades, valores, crenças e decisões.
Esse fenômeno, que chamamos de software power, cria novas formas de colonialismo informacional, onde o Brasil e os países do Sul Global tornam-se colônias de dados, consumidores de narrativas prontas, e alvos de desinformação transnacional.
Qual o papel do Brasil nesse cenário?
Lula propõe no artigo a reconstrução do multilateralismo com base em justiça, cooperação e inclusão. Mas isso só será possível se o Brasil enfrentar de forma estratégica os desafios da guerra cognitiva e da soberania digital. Para isso, propomos sete caminhos concretos:
Desenvolver um ecossistema nacional de softwares e IA de código aberto, para substituir a dependência de tecnologias estrangeiras.
Reformar a educação para incluir alfabetização digital crítica, capacitando jovens a reconhecer manipulações algorítmicas e defender a democracia informacional.
Criar uma rede de comunicação pública, comunitária e cooperativa, livre de algoritmos manipuladores.
Fortalecer os BRICS como bloco digital soberano, com infraestrutura própria de dados, nuvens, satélites e plataformas.
Garantir que a COP30, sob liderança do Brasil, seja também uma COP Digital, que enfrente o impacto ambiental e social da indústria tecnológica.
Investir em ciência aberta, ética e democrática, que valorize saberes indígenas, quilombolas e populares na construção de tecnologias sustentáveis.
Elaborar uma doutrina nacional de defesa informacional, que articule cibersegurança, proteção de dados e defesa cognitiva, respeitando os direitos humanos.
Não se desplanetiza a existência
Lula afirma com razão: “É impossível desplanetizar nossa existência compartilhada”. Nenhum muro tecnológico nos isola da interdependência global. Mas essa interdependência não pode se basear na dominação mental e na desigualdade digital. O Brasil, com sua rica diversidade, história de resistência e vocação diplomática, pode liderar um novo multilateralismo cognitivo, ético e planetário.
O futuro não está nos algoritmos, mas em quem os controla, com quais valores e para qual projeto de mundo
Artigo do Presidente Lula publicado em 10 de julho no Le Monde 🇫🇷, El País 🇪🇸, O Guardião 🇵🇹, Der Spiegel 🇩🇪, Corriere della Sera 🇮🇹, Yomiuri Shimbun 🇯🇵, China Diário 🇨🇳, Clarín 🇦🇷 e La Jornada 🇲🇽.
📰NÃO HÁ ALTERNATIVA AO MULTILATERALISMO O ano de 2025 deverá ser um momento de celebração, marcando oito décadas de existência das Nações Unidas’. Mas corre o risco de ficar na história como o ano em que a ordem internacional construída desde 1945 entrou em colapso. As rachaduras eram visíveis há muito tempo. Desde as invasões do Iraque e do Afeganistão, a intervenção na Líbia e a guerra na Ucrânia, alguns membros permanentes do Conselho de Segurança banalizaram o uso ilegal da força. O fracasso em agir face ao genocídio em Gaza representa uma negação dos valores mais básicos da humanidade. A incapacidade de superar as diferenças está a alimentar uma nova escalada de violência no Médio Oriente, cujo último capítulo inclui o ataque ao Irão. A lei do mais forte também ameaça o sistema comercial multilateral. As tarifas abrangentes perturbam as cadeias de valor e empurram a economia global para uma espiral de preços elevados e estagnação. A Organização Mundial do Comércio foi esvaziada e ninguém se lembra da Ronda de Desenvolvimento de Doha. O colapso financeiro de 2008 expôs o fracasso da globalização neoliberal, mas o mundo permaneceu preso ao manual de austeridade. A escolha de resgatar os ultra-ricos e as grandes corporações à custa dos cidadãos comuns e das pequenas empresas aprofundou a desigualdade. Nos últimos dez anos, os $33,9 trilhões acumulados pelo 1% mais rico do mundo equivalem a 22 vezes os recursos necessários para erradicar a pobreza global. O estrangulamento da capacidade de ação do estado tem levado à desconfiança pública nas instituições. O descontentamento tornou-se um terreno fértil para narrativas extremistas que ameaçam a democracia e promovem o ódio como um projeto político. Muitos países cortaram programas de cooperação em vez de redobrar esforços para implementar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável até 2030. Os recursos disponíveis são insuficientes, os custos são elevados, o acesso é burocrático e as condições impostas muitas vezes não respeitam as realidades locais. Não se trata de caridade, mas de abordar as disparidades enraizadas em séculos de exploração, interferência e violência contra os povos da América Latina e das Caraíbas, de África e da Ásia. Num mundo com um PIB combinado superior a $100 biliões, é inaceitável que mais de 700 milhões de pessoas ainda sofram de fome e vivam sem electricidade ou água. Os países mais ricos têm a maior responsabilidade histórica pelas emissões de carbono, mas serão os mais pobres os que mais sofrerão com as alterações climáticas. O ano de 2024 foi o mais quente da história, mostrando que a realidade está se movendo mais rápido do que o Acordo de Paris. As obrigações vinculativas do Protocolo de Quioto foram substituídas por compromissos voluntários, e os compromissos de financiamento assumidos na COP15 em Copenhaga—, prometendo $100 mil milhões anualmente—, nunca se concretizaram. O recente aumento dos gastos militares da OTAN torna essa possibilidade ainda mais remota.Os ataques às instituições internacionais ignoram os benefícios concretos que o sistema multilateral trouxe à vida das pessoas. Se a varíola foi erradicada, a camada de ozono preservada e os direitos laborais ainda protegidos em grande parte do mundo, é graças aos esforços destas instituições. Em tempos de polarização crescente, termos como "desglobalização" tornaram-se comuns. Mas é impossível "desplanetizar" a nossa existência partilhada. Nenhum muro é suficientemente alto para preservar ilhas de paz e prosperidade rodeadas de violência e miséria. O mundo de hoje é muito diferente do de 1945. Surgiram novas forças e surgiram novos desafios. Se as organizações internacionais parecem ineficazes é porque a sua estrutura já não reflecte a realidade actual. As ações unilaterais e excludentes são agravadas pela ausência de liderança coletiva. A solução para a crise do multilateralismo não é abandoná-la, mas reconstruí-la sobre bases mais justas e inclusivas. Este é o entendimento que o Brasil—, cuja vocação sempre foi promover a colaboração entre as nações, demonstrou durante sua presidência do G20 no ano passado e continua a demonstrar através de suas presidências do BRICS e da COP30 este ano: que é possível encontrar pontos em comum mesmo em cenários adversos. Há uma necessidade urgente de voltar a comprometer-se com a diplomacia e reconstruir os alicerces do verdadeiro multilateralismo—one capaz de responder ao clamor de uma humanidade temerosa pelo seu futuro. Só então poderemos parar de assistir passivamente ao aumento da desigualdade, à insensatez da guerra e à destruição do nosso próprio planeta. Luiz Inácio Lula da Silva Presidente do BrasilHá uma necessidade urgente de voltar a comprometer-se com a diplomacia e reconstruir os alicerces do verdadeiro multilateralismo—one capaz de responder ao clamor de uma humanidade temerosa pelo seu futuro. Só então poderemos parar de assistir passivamente ao aumento da desigualdade, à insensatez da guerra e à destruição do nosso próprio planeta. Luiz Inácio Lula da Silva Presidente do BrasilHá uma necessidade urgente de voltar a comprometer-se com a diplomacia e reconstruir os alicerces do verdadeiro multilateralismo—one capaz de responder ao clamor de uma humanidade temerosa pelo seu futuro. Só então poderemos parar de assistir passivamente ao aumento da desigualdade, à insensatez da guerra e à destruição do nosso próprio planeta. Luiz Inácio Lula da Silva Presidente do Brasil
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