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domingo, 15 de fevereiro de 2009

CANTE LÁ QUE EU CANTO CÁ




Conta meu pai que chegando à beira do rio a canoa estava do outro lado. Teve que tirar as roupas, colocar em um saco e amarrá-las na cabeça. Meu pai era um exímio nadador como o meu avô também era. Naquela noite o Rio Jaguaribe estava de barriga cheia como dizem os sertanejos por aqui.
Bem chegando do outra lado do rio, chegando à casa da parteira soube que esta tinha partido para outra casa realizar uma parteira. Foi ao encontro de outra, em lugar bem distante, também esta estava fazendo um parto. E por fim encontrou outra parteira, mas chegando em casa eu tinha nascido, cabendo a esta realizar os procedimentos finais.
Meu pai enfrentou toda a sorte e todo o sofrimento no sertão. Cedo começou a trabalhar, carregando água na cabeça para abastecer em sua casa. Nos períodos difíceis do sertão era obrigado a beber água em pequenas poças de águas cheias de girinos de sapo. Era preciso ter cuidado para engolir os girinos. Os períodos de seca eram períodos de grande clamor na região e grande parte dos trabalhadores tinham que ir embora para o Maranhão para buscar trabalho e escapar da fome.


Portanto, o poema abaixo dói no meu peito profundamente. Leia-o com muito cuidado e sinta

Cante lá, que eu canto cá
Poeta, cantô de rua,
Que na cidade nasceu,
Cante a cidade que é sua,
Que eu canto o sertão que é meu.
Se aí você teve estudo,
Aqui, Deus me ensinou tudo,
Sem de livro precisá
Por favô, não mêxa aqui,
Que eu também não mexo aí,
Cante lá, que eu canto cá.
Você teve inducação,
Aprendeu munta ciença,
Mas das coisa do sertão
Não tem boa esperiença.
Nunca fez uma paioça,
Nunca trabaiou na roça,
Não pode conhecê bem,
Pois nesta penosa vida,
Só quem provou da comida
Sabe o gosto que ela tem.
Pra gente cantá o sertão,
Precisa nele morá,
Tê armoço de fejão
E a janta de mucunzá,
Vivê pobre, sem dinhêro,
Socado dentro do mato,
De apragata currelepe,
Pisando inriba do estrepe,
Brocando a unha-de-gato.
Você é muito ditoso,
Sabe lê, sabe escrevê,
Pois vá cantando o seu gozo,
Que eu canto meu padecê.
Inquanto a felicidade
Você canta na cidade,
Cá no sertão eu infrento
A fome, a dô e a misera.
Pra sê poeta divera,
Precisa tê sofrimento.
Sua rima, inda que seja
Bordada de prata e de ôro,
Para a gente sertaneja
É perdido este tesôro.
Com o seu verso bem feito,
Não canta o sertão dereito,
Porque você não conhece
Nossa vida aperreada.
E a dô só é bem cantada,
Cantada por quem padece.
Só canta o sertão dereito,
Com tudo quanto ele tem,
Quem sempre correu estreito,
Sem proteção de ninguém,
Coberto de precisão
Suportando a privação
Com paciença de Jó,
Puxando o cabo da inxada,
Na quebrada e na chapada,
Moiadinho de suó.
Amigo, não tenha quêxa,
Veja que eu tenho razão
Em lhe dizê que não mêxa
Nas coisa do meu sertão.
Pois, se não sabe o colega
De quá manêra se pega
Num ferro pra trabaiá,
Por favô, não mêxa aqui,
Que eu também não mêxo aí,
Cante lá que eu canto cá.
Repare que a minha vida
É deferente da sua.
A sua rima pulida
Nasceu no salão da rua.
Já eu sou bem deferente,
Meu verso é como a simente
Que nasce inriba do chão;
Não tenho estudo nem arte,
A minha rima faz parte
Das obra da criação.
Mas porém, eu não invejo
O grande tesôro seu,
Os livro do seu colejo,
Onde você aprendeu.
Pra gente aqui sê poeta
E fazê rima compreta,
Não precisa professô;
Basta vê no mês de maio,
Um poema em cada gaio
E um verso em cada fulô.
Seu verso é uma mistura,
É um tá sarapaté,
Que quem tem pôca leitura
Lê, mais não sabe o que é.
Tem tanta coisa incantada,
Tanta deusa, tanta fada,
Tanto mistéro e condão
E ôtros negoço impossive.
Eu canto as coisa visive
Do meu querido sertão.
Canto as fulô e os abróio
Com todas coisa daqui:
Pra toda parte que eu óio
Vejo um verso se bulí.
Se as vêz andando no vale
Atrás de curá meus male
Quero repará pra serra
Assim que eu óio pra cima,
Vejo um divule de rima
Caindo inriba da terra.
Mas tudo é rima rastêra
De fruita de jatobá,
De fôia de gamelêra
E fulô de trapiá,
De canto de passarinho
E da poêra do caminho,
Quando a ventania vem,
Pois você já tá ciente:
Nossa vida é deferente
E nosso verso também.
Repare que deferença
Iziste na vida nossa:
Inquanto eu tô na sentença,
Trabaiando em minha roça,
Você lá no seu descanso,
Fuma o seu cigarro mando,
Bem perfumado e sadio;
Já eu, aqui tive a sorte
De fumá cigarro forte
Feito de paia de mio.
Você, vaidoso e facêro,
Toda vez que qué fumá,
Tira do bôrso um isquêro
Do mais bonito metá.
Eu que não posso com isso,
Puxo por meu artifiço
Arranjado por aqui,
Feito de chifre de gado,
Cheio de argodão queimado,
Boa pedra e bom fuzí.
Sua vida é divirtida
E a minha é grande pená.
Só numa parte de vida
Nóis dois samo bem iguá:
É no dereito sagrado,
Por Jesus abençoado
Pra consolá nosso pranto,
Conheço e não me confundo
Da coisa mió do mundo
Nóis goza do mesmo tanto.
Eu não posso lhe invejá
Nem você invejá eu,
O que Deus lhe deu por lá,
Aqui Deus também me deu.
Pois minha boa muié,
Me estima com munta fé,
Me abraça, beja e qué bem
E ninguém pode negá
Que das coisa naturá
Tem ela o que a sua tem.
Aqui findo esta verdade
Toda cheia de razão:
Fique na sua cidade
Que eu fico no meu sertão.
Já lhe mostrei um ispeio,
Já lhe dei grande conseio
Que você deve tomá.
Por favô, não mexa aqui,
Que eu também não mêxo aí,
Cante lá que eu canto cá.
Patativa de Assaré/Antônio Gonçalves da Silva
Do livro: "Cante lá, que Eu Canto cá", Ed. Vozes, 1978, RJ

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