Leonardo Boff: Marina propor independência do BC é falta de brasilidade; “pobres perderam uma aliada e os opulentos ganharam uma legitimadora” - Viomundo.
publicado em 3 de setembro de 2014 às 18:48
por Conceição Lemes
Leonardo Boff é um dos mais brilhantes e respeitados intelectuais do
Brasil. Teólogo, escritor e professor universitário, expoente da
Teologia da Libertação. Ficou conhecido pela sua história de defesa
intransigente das causas sociais. Atualmente dedica-se sobretudo às
questões ambientais.
Ele conhece Marina Silva, candidata do PSB à Presidência da
República, desde os tempos em que ela atuava no Acre e estava muito
ligada à Teologia da Libertação. Acompanhou toda a sua trajetória.
Em 2010, chegou a sonhar com uma representante dos povos da floresta,
dos caboclos, dos ribeirinhos, dos indígenas, dos peões vivendo em
situação análoga à escravidão, chegar a presidente do Brasil. Hoje,
não.
“Está ficando cada vez mais claro
que Marina tem um projeto pessoal de ser presidente, custe o que
custar”, observa Boff em entrevista exclusiva ao Viomundo.
Para Boff, Marina acolheu plenamente o receituário neoliberal.
“Ela o diz com certo orgulho inconsciente, sem dar-se conta do que
isso realmente significa: mercado livre, redução dos gastos públicos
(menos médicos, menos professores, menos agentes sociais etc), flutuação
do dólar e contenção da inflação com a eventual alta de juros”, alerta.
“Como consequência, arrocho salarial, desemprego, fome nas famílias
pobres, mortes evitáveis. É o pior que nos poderia acontecer. Tudo isso
vem sob o nome genérico de ‘austeridade fiscal’ que está afundando as
economias da zona do Euro”.
Sobre a autonomia do Banco Central prevista no programa de Marina,
Boff detona: “Acho uma falta total de brasilidade. Significa renunciar à
soberania monetária do país e entregá-la ao jogo do mercado, dos bancos
e do sistema financeiro capitalista nacional e transnacional. A forma
como o capital se impõe é manter sob seu controle os Bancos Centrais dos
países”.
Veja a íntegra da nossa entrevista. Nela, Leonardo Boff aborda o
recuo de Marina em relação à criminalização da homofobia, a sua
trajetória religiosa, a influência de Silas Malafaia, Neca Setúbal
(Banco Itaú), Guilherme Leal (Natura) e do economista neoliberal Eduardo
Gianetti da Fonseca. Também a autonomia formal do Banco Central e o
risco de ela sofrer impeachment.
Viomundo — Na última sexta-feira, Marina lançou o seu
programa de governo, que previa o reconhecimento da união homoafetiva e a
criminalização da homofobia. Bastou o pastor Malafaia tuitar quatro
frases para ela voltar atrás. O que achou dessa postura? É cristão não
criminalizar a homofobia, que frequentemente provoca assassinatos?
Leonardo Boff — Está ficando cada vez mais claro que
Marina tem um projeto pessoal de ser presidente, custe o que custar.
Numa ocasião, ela chegou a declarar que um dos objetivos desta eleição é
tirar o PT do poder, o que faz supor mágoas não digeridas contra o PT
que ajudou a fundar.
O Malafaia, líder da Igreja Assembleia de Deus à qual Marina
pertence, é o seu Papa. O Papa falou, ela, fundamentalisticamente
obedece, pois vê nisso a vontade de Deus. E, aí, muda de opinião. Creio
que não o faz por oportunismo político, mas por obediência à autoridade
religiosa, o que acho, no regime democrático, injustificável.
Um presidente deve obediência à Constituição e ao povo que a elegeu e não a uma autoridade exterior à sociedade.
Viomundo — Qual o risco para a democracia brasileira de
alguém na presidência estar submissa a visões tão retrógradas em pleno
século XXI, ignorando os avanços, as modernidades?
Leonardo Boff — Um fundamentalista é um dos atores
políticos menos indicado para exercer o cargo da responsabilidade de um
presidente. Este deve tomar decisões dentro dos parâmetros
constitucionais, da democracia e de um estado laico e pluralista. Este
tolera todas as expressões religiosas, não opta por nenhuma, embora
reconheça o valor delas para a qualidade ética e espiritual da vida em
sociedade.
Se um presidente obedece mais aos preceitos de sua religião do que
aos da Constituição, fere a democracia e entra em conflito permanente
com outros até de sua base de sustentação, pois os preceitos de uma
religião particular não podem prevalecer sobre a totalidade da
sociedade.
A seguir estritamente nesta linha, pode acontecer um impeachment à Marina, por inabilidade de coordenar as tensões políticas e gerenciar conflitos sempre presentes em sociedades abertas.
Viomundo — Lá atrás Marina Silva esteve ligada à Teologia da
Libertação. Atualmente, é da Assembleia de Deus. O que o senhor diria
dessa trajetória religiosa? O que representa essa guinada para o
conservadorismo exacerbado?
Leonardo Boff – Respeito a opção religiosa de Marina
bem como de qualquer pessoa. Eu a conheço do Acre e ela participava dos
cursos que meu irmão teólogo Frei Clodovis (trabalhava 6 meses na PUC
do Rio e 6 meses na igreja do Acre) e eu dávamos sobre Fé e Política e
sobre Teologia da Libertação.
Aqui se falava da opção pelos pobres contra a pobreza, a urgência de
se pensar e criar um outro tipo de sociedade e de país, cujos principais
protagonistas seriam as grandes maiorias pobres junto com seus aliados,
vindos de outras classes sociais. Marina era uma liderança reconhecida e
amada por toda a Igreja.
Depois, ao deixar o Acre, por razões pessoais, converteu-se à Igreja
Assembleia de Deus. Esta se caracteriza por um cristianismo
fundamentalista, pietista e afastado das causas da pobreza e da opressão
do povo. Sua pregação é a Bíblia, preferentemente o Antigo Testamento,
com uma leitura totalmente descontextualizada daquele tempo e do nosso
tempo. Como fundamentalista é uma leitura literalista, no estilo dos
muçulmanos.
Politicamente tem consequências graves: Marina pôs o foco no pietismo
e no fundamentalismo, na vida espiritual descolada da história presente
e quase não fala mais da opção pelos pobres e da libertação. Pelo menos
não é este o foco de seu discurso.
A libertação para ela é espiritual, do pecado e das perversões do
mundo. Com esse pensamento é fácil ser capturada pelo sistema vigente de
mercado, da macroeconomia neoliberal e especulativa.
Isso é inegável, pois seus assessores são desse campo: a herdeira do
Banco Itaú Maria Alice (Neca), Guilherme Leal da Natura e o economista
neoliberal Eduardo Gianetti da Fonseca. Os pobres perderam uma aliada e
os opulentos ganharam uma legitimadora.
E eu que em 2010 sonhava com uma representante dos povos da floresta,
dos caboclos, dos ribeirinhos, dos indígenas, dos peões vivendo em
situação análoga à escravidão, dos operários explorados das grandes
fábricas, dos invisíveis, alguém que viria dos fundos da maior floresta
úmida do mundo, a Amazônia, chegar a ser presidente de um dos maiores
países do mundo, o Brasil?! Esse sonho foi uma ilusão que faz doer até
os dias de hoje. Pelo menos vale como um sonho que nunca morre!
Viomundo — O programa de Marina prevê autonomia ao Banco Central. O que acha dessa medida?
Leonardo Boff — Eu me pergunto, autonomia de quem e para quem?
Acho uma falta total de brasilidade. Significa renunciar à soberania
monetária do país e entregá-la ao jogo do mercado, dos bancos e do
sistema financeiro capitalista nacional e transnacional. Um presidente/a
é eleito para governar seu povo e um dos instrumentos principais é o
controle monetário que assim lhe é subtraído. Isso é absolutamente
antidemocrático e comporta submissão à tirania das finanças que são cada
vez mais vorazes, pondo países inteiros à falência como é o caso da
Grécia, da Espanha, da Itália, de Portugal e outros.
Viomundo — Essa medida expressa a influência de Neca Setúbal, herdeira do Itaú, no seu futuro governo?
Leonardo Boff — Quem controla a economia controla o
país, ainda mais que vivemos numa sociedade de “Grande Transformação”
denunciada pelo economista húngaro-americano Karl Polaniy ainda em 1944
quando, como diz, passamos de uma sociedade com mercado para uma
sociedade só de mercado. Então tudo vira mercadoria, inclusive as coisas
mais sagradas como água, alimentos, órgãos humanos.
A forma como o capital se impõe é manter sob seu controle os Bancos
Centrais dos países. A partir desse controle, estabelecem os níveis dos
juros, a meta da inflação, a flutuação do dólar e a porcentagem do
superávit primário (aquela quantia tirada dos impostos e reservada para
pagar os rentistas, aqueles que emprestaram dinheiro ao governo).
Os bancos jogam um papel decisivo, pois é através deles que se fazem
os repasses dos empréstimos ao governo e se cobram juros pelos serviços.
Quanto maior for o superávit primário a alíquota Selic mais lucram.
Pode ser que a citada Neca Setúbal tenha tido influência para que a
candidata Marina acreditasse neste receituário, velho, antipopular,
danoso para as grandes maiorias, mas altamente benéfico para o sistema
macroeconômico vigente.
Viomundo — As avaliações feitas até agora mostram que o programa econômico de Marina é o mesmo de Aécio Neves, candidato do PSDB à Presidência. São neoliberais. O que representaria para o Brasil o retorno a esse modelo? O senhor acha que, se eleita, o governo Marina teria conotações neoliberais?
Viomundo — As avaliações feitas até agora mostram que o programa econômico de Marina é o mesmo de Aécio Neves, candidato do PSDB à Presidência. São neoliberais. O que representaria para o Brasil o retorno a esse modelo? O senhor acha que, se eleita, o governo Marina teria conotações neoliberais?
Leonardo Boff — Marina acolheu plenamente o
receituário neoliberal. Ela o diz com certo orgulho inconsciente, sem
dar-se conta do que isso realmente significa: mercado livre, redução dos
gastos públicos (menos médicos, menos professores, menos agentes
sociais etc), flutuação do dólar e contenção da inflação com a eventual
alta de juros.
Como consequência, arrocho salarial, desemprego, fome nas famílias
pobres, mortes evitáveis. É o pior que nos poderia acontecer. Tudo isso
vem sob o nome genérico de “austeridade fiscal” ,que está afundando as
economias da zona do Euro e não deram certo em lugar nenhum do mundo, se
olharmos a política econômica a partir da maioria da população. Dão
certo para os ricos que ficam cada vez mas ricos, como é o caso dos EUA
onde 1% da população ganha o equivalente ao que ganham 99% das pessoas.
Hoje os EUA são um dos países mais desiguais do mundo.
Viomundo – Foi amplamente divulgado que Marina consulta
a Bíblia antes de tomar decisões complexas. Esta visão criacionista do
mundo é compatível com um mundo laico?
Leonardo Boff — O que Marina pratica é o
fundamentalismo. Este é uma patologia de muitas religiões, inclusive de
grupos católicos. O fundamentalismo não é uma doutrina. É uma maneira de
entender a doutrina: a minha é a única verdadeira e as demais estão
erradas e como tais não têm direito nenhum.
Graças a Deus que isso fica apenas no plano das ideias. Mas
facilmente pode passar para o plano da prática. E, aí, se vê evangélicos
fundamentalistas invadirem centros de umbanda ou do candomblé e
destruírem tudo ou fazerem exorcismos e espalharem sal para todo canto. E
no Oriente Médio fazem-se guerras entre fundamentalistas de tendências
diferentes com grande eliminação de vidas humanas como o faz atualmente o
recém-criado Estado Islâmico. Este pratica limpeza étnica e mata todo
mundo de outras etnias ou crenças diferentes das dele.
Marina não chega a tanto. Mas possui essa mentalidade teologicamente
errônea e maléfica. No fundo, possui um conceito fúnebre de Deus. Não é
um Deus vivo que fala pela história e pelos seres humanos, mas falou
outrora, no passado, deixou um livro, como se ele nos dispensasse de
pensar, de buscar caminhos bons para todos.
O primeiro livro que Deus escreveu são a criação e a natureza. Elas
estão cheias de lições. Criou a inteligência humana para captarmos as
mensagens da natureza e inventarmos soluções para nossos problemas.
A Bíblia não é um receituário de soluções ou um feixe de verdades
fixadas, mas uma fonte de inspiração para decidirmos pelos melhores
caminhos. Ela não foi feita para encobrir a realidade, mas para
iluminá-la. Se um fundamentalista seguisse ao pé da letra o que está
escrito no livro Levítico 20,13 cometeria um crime e iria para a cadeia,
pois aí se diz textualmente: “Se um homem dormir com outro, como se
fosse com mulher, ambos cometem grave perversidade e serão punidos com a
morte: são réus de morte”.
Viomundo — Marina fala em governar com os melhores. É
possível promover inclusão social, manter políticas que favorecem os
mais pobres com uma política econômica neoliberal?
Leonardo Boff — Marina parece que não conhece a
realidade social na qual há conflitos de interesses, diversidade de
opções políticas e ideológicas, algumas que se opõem completamente às
outras.
Lendo o programa de governo do PSB de Marina parece que fazemos um
passeio ao jardim do Éden. Tudo é harmonioso, sem conflitos, tudo se
ordena para o bem do povo. Se entre os melhores estiver um político,
para aceitar seu convite, deverá abandonar seu partido e com isso,
segundo a atual legislação, perderia o mandato.
Ela necessariamente, se quiser governar, deverá fazer alianças, pois
temos um presidencialismo de coalizão. Se fizer aliança com o PMDB
deverá engolir o Sarney, o Renan Calheiros e outros exorcizados por
Marina. Collor tentou governar com base parlamentar exígua e sofreu um impeachment.
Viomundo — Marina é preparada para presidir um país tão complexo como o Brasil?
Leonardo Boff — Eu pessoalmente estimo sua inteireza
pessoal, sua visão espiritualista (abstraindo o fundamentalismo), sua
busca de ética em tudo o que faz. Estimo a pessoa, mas questiono o ator
político. Acho que não tem a inteligência política para fazer as
alianças certas. O presidente deve ser uma pessoa de síntese, capaz de
equilibrar os interesses e resolver conflitos para que não sejam danosos
e chegar a soluções de ganha-ganha. Para isso precisa-se de habilidade,
coisa que em Lula sobrava. Marina, por causa de seu fundamentalismo,
não é uma pessoa de síntese, mas antes de divisão.
Viomundo — A preservação efetiva do meio ambiente é compatível com o capitalismo selvagem dos neoliberais?
Leonardo Boff — Entre capitalismo e ecologia há uma
contradição direta e fundamental. O capitalismo quer acumular o mais que
pode sem qualquer consideração dos bens e serviços limitados da Terra e
da exploração das pessoas. Onde ele chega, cria duas injustiças: a
social, gerando muita pobreza de um lado e grande riqueza do outro; e
uma injustiça ecológica ao devastar ecossistemas e inteiras florestas
úmidas.
Marina fala de sustentabilidade, o que é correto. Mas deve ficar
claro que a sustentabilidade só é possível a partir de outro paradigma
que inclui a sustentabilidade ambiental, político-social, mental e
integral (envolvendo nossa relação com as energias de todo o universo).
Portanto, estamos diante de uma nova relação para com a natureza e
a Terra, onde as medidas econômicas preconizadas por Marina contradizem
esta visão. Temos que produzir, sim, para atender demandas humanas, mas
produzir respeitando os limites de cada ecossistema, as leis da natureza
e repondo aquilo que temos demasiadamente retirado dela.
Marina quer a produção sustentável, mas mantém a dominação do ser
humano sobre a natureza. Este está dentro da natureza, é parte dela e
responsável por sua conservação e reprodução, seja como valor em si
mesmo, seja como matriz que atende nossas necessidades e das futuras
gerações.
Ocorre que atualmente o sistema está destruindo as bases
físico-químicas que sustentam a vida. Por isso, ele é perigoso e pode
nos levar a uma grande catástrofe. E com certeza os que mais sofrerão,
serão aqueles que sempre foram mais explorados e excluídos do sistema.
Esta injustiça histórica nós não podemos aceitar e repetir.
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