Justiça - Carta Capital
Um erro primário do STF
virá à tona. E surgirá oportunidade de debater o financiamento
empresarial dos partidos, principal mecanismo de corrupção política no
Brasil
por Antonio Martins
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publicado
17/09/2013 09:39,
última modificação
17/09/2013 20:04
Se o voto do ministro Celso de Mello encerrar,
nesta quarta-feira, o julgamento do chamado “mensalão” pelo Supremo
Tribunal Federal (STF), milhões de brasileiros irão sentir-se aliviados e
engrandecidos. Tendo acompanhado o episódio, durante oito anos, por
meio dos jornais e da TV, eles acreditarão que surgiu, enfim, um caso em
que o desvio de verbas públicas não ficará impune. Certas
circunstâncias ampliarão seu júbilo. Entre os condenados, haverá “peixes
graúdos”. Não será poupado o PT, partido no governo há dez anos. E,
glória máxima, parte dos réus irá para a cadeia – o símbolo maior e mais
humilhante dos sistemas punitivos modernos. Ficará aberto caminho,
pensarão estes milhões, para moralizar a vida política e resgatar a
República.
Será um erro trágico, por dois motivos. Do ponto de vista factual, surgiram, nos últimos meses, sinais concretos de que o chamado “mensalão” não envolveu
desvio de recursos públicos. O ministro Joaquim Barbosa, relator do
processo e hoje presidente do STF, ignorou estes sinais; teme que este
erro primário torne-se claro; é, também por isso, um opositor ferrenho
da reabertura do caso.
Mas o engano principal seria político. O
encerramento do processo, no pé em que está, evitará que a sociedade
debata a corrupção da vida política por meio do dinheiro oferecido pelas
empresas aos partidos e a suas campanhas eleitorais. Este é, de longe, o
principal mecanismo para submeter as decisões políticas ao poder
econômico, e para promover o enriquecimento ilícito de ocupantes de
cargos públicos. Está exposto, em detalhes, no episódio do “mensalão”.
Encarcerar José Dirceu e seus colegas, e não examiná-lo, satisfará o
ímpeto punitivo com que alguns julgam possível enfrentar a corrução. Mas
varrerá para debaixo do tapete o motor que a impulsiona.
Gilmar Mendes e Pizzolato
A derrubada do mito segundo o qual o “mensalão”
envolveu apropriação e desvio de recursos públicos é obra de um mestre: o
jornalista Raimundo Rodrigues Pereira, que dirigiu, nos anos 1970 e 80
algumas das principais publicações da imprensa de resistência à ditadura1. Hoje, toca a revista Retrato do Brasil, Lá, ele
e a repórter Lia Imanishi, escrevem, desde fevereiro de 2012, uma série
de reportagens investigativas sobre o julgamento, pelo STF, da Ação
Penal 470 (AP-470) – a que examina o “mensalão”. Seu trabalho estende-se
por ao menos nove edições regulares da revista [1 2 3 4 5 6 7 8 9], um número especial e um livro.
Os textos expõe em detalhes como dois Procuradores-Gerais da República e
o diversos ministros do Supremo, a começar por Joaquim Barbosa,
passaram por cima dos fatos e construíram, para o episódio, a versão que
mais interessava à mídia, à opinião pública conservadora e... ao
próprio sistema político.
Denunciado pelo ex-deputado Roberto Jefferson
(PTB-RJ) em junho de 2005, o “mensalão” chegou à Procuradoria-Geral
(PGR) e ao STF um mês depois. Alguns fatos muito graves eram conhecidos,
mostram as reportagens. No início do governo Lula, a direção nacional
do PT repassou, por orientação de seu tesoureiro, Delúbio Soares, e com
apoio do publicitário Marcos Valério, cerca de R$ 55,3 milhões a
políticos de cinco partidos: o próprio PT, PL, PP, PMDB e PTB. Os
pagamentos foram feitos por meio do chamado “valerioduto” – um esquema
que incluía os bancos Rural e BMG, mais a agência de publicidade de
Valério e empresas de seus sócios. Além disso, desde agosto daquele ano
Delúbio admitiu
que cometera crimes eleitorais: arrecadação de fundos junto a empresas
sem contabilização (“caixa 2”); distribuição de somas a correligionários
e aliados, também “por fora”.
No entanto, mostra o Retrato do Brasil, os
procuradores-gerais Antonio Fernando de Souza (que atuou no caso até o
final de seu mandato, em junho de 2009) e seu sucessor, Roberto Gurgel,
omitiram-se da investigação deste delito. Estavam empenhados em
argumentar que a admissão do “caixa 2” era mera estratégia para ocultar
outro crime. Os dirigentes PT, no governo federal, teriam abastecido o
partido e as agremiações aliadas com recursos desviados do Estado.
Formular hipóteses é parte das
atribuições do procurador-geral, responsável por comandar inquéritos.
Mas nem Antonio Fernando de Souza, nem Roberto Gurgel preocuparam-se com
os passos posteriores indispensáveis: investigar; demonstrar a
suposição; reunir provas. Ao denunciar ao STF, em abril de 2006,
quarenta pessoas envolvidas no episódio, o primeiro assegurou que
houvera desvio de recursos públicos. À falta de provas, serviu-se de um
atalho. Henrique Pizzolato, diretor de marketing do Banco do Brasil
(BB) à época dos fatos, figurava ao mesmo tempo em duas pontas do
inquérito. Ele havia recebido, por meio do valerioduto, R$ 326 mil. E,
na condição de dirigente do BB, autorizara o pagamento de R$ 72,8
milhões à DNA, agência de publicidade de Marcos Valério. Isso bastou
para que o procurador juntasse as pontas. A origem primeira do dinheiro
repassado ao PT e aliados seria o Banco do Brasil. Pizzolato desviara os
R$ 72,8 milhões da instituição que ajudava a dirigir; como recompensa,
recebera suborno de R$ 326 mil.
A “demonstração” foi aceita e
repetida acriticamente (e à exaustão), nos últimos sete anos – a começar
pelo sucessor de Souza e pela maioria dos ministros do STF. Num de seus
textos, Raimundo Pereira descreve,
com humor, o discurso empolado que o ministro Gilmar Mendes proferiu na
sessão do tribunal, transmitida ao vivo pela TV, em 29/8/12. Está no YouTube.
Voz empostada, gestos teatrais, Mendes indigna-se: “O que fizeram com o
Ban-co-do-Bra-sil?” E prossegue: “Em operações singelas, se tiram desta
instituição 73 milhões, sabendo que não era para fazer serviço algum.
[…] Eu fico a imaginar […] como nós descemos na escala das
de-gra-da-ções”. Três semanas antes, ao apresentar sua acusação, no
plenário do Supremo, o procurar-geral Roberto Gurgel, assegurara: “Foi
sem dúvida o mais atrevido e escandaloso caso de corrupção e desvio de
dinheiro público realizado no Brasil".
Em nenhum momento, Pizzolato
admitiu as acusações que lhe foram feitas. Os R$ 326 mil recebidos via
valerioduto, sustentou, foram para o PT. Todos os pagamentos do BB à DNA
correspondiam a serviços efetivamente prestados pela agência. Conforme
reza um princípio elementar do Direito, cabia aos que o acusavam provar
sua culpa.
Poucos sabem, mas o princípio
básico da presunção de inocência não foi respeitado, no julgamento da
AP-470. O STF considerou que, sendo os réus pessoas “muito poderosas”, e
tendo eles supostamente formado uma quadrilha para apagar as marcas de
seus crimes, era possível condená-los com base em indícios consistentes.
Pizzolato, por exemplo, foi condenado por unanimidade, em três das
acusações que enfrentou e, por 11 votos contra um, numa quarta. Devido à
ampla diferença de votos, não poderá beneficiar-se do direito a
apresentar “embargos infringentes”, mesmo que o ministro Celso de Mello
considere-os legítimos. Sua pena está fixada em 12 anos e 7 meses de
prisão mais multa em torno de R$ 1,3 milhão.
A partir de outubro, no entanto, restou-lhe um alento moral. As reportagens de Retrato do Brasil refizeram
a trilha de seus argumentos e comprovaram sua veracidade. O STF não
permite a Pizzolato reivindicar sua presunção de inocência, mas Raimundo
Pereira e Lia Imanishi estão conseguindo comprovar
que ele não é culpado do que lhe atribui o Supremo. A partir dos
próprios autos do processo, flagrantemente ignorados por dois
procuradores-gerais e diversos ministros do Supremo, levantaram 99 notas
fiscais que comprovam: os R$ 72,8 milhões pagos à DNA referem-se a
promoções e eventos reais, que ocorreram às vistas de milhares ou
milhões de brasileiros e têm documentação fiscal regular.
Se estivessem interessados em
cumprir sua função constitucional, e não em condenar de antemão, os
procuradores e ministros poderiam ter chegado às mesmas conclusões dos
repórteres. Verificariam que os recursos pagos pelo
BB à DNA não “tiraram da instituição 73 milhões, sabendo que não era
para fazer serviço algum”. Custearam eventos patrocinados pelo cartão de
crédito do banco (bandeira Visa), ou promoções para divulgá-lo. Entre
elas, o Réveillon do Rio de Janeiro; o Círio de Nazaré, em Belém; o
Festival de Inverno de Campos do Jordão; a exposição de cultura africana
Projeto África, no Centro Cultural do banco no Rio de Janeiro; a
publicidade do BB nos biquínis, sutiãs e bandanas das campeãs mundiais
de vôlei de praia, Shelda e Adriana; dezenas de peças publicitárias
veiculadas pela Rede Globo...
As descobertas de Raimundo e
Lia, que desmentem os vereditos do STF, foram feitas em outubro do ano
passado e têm sido apresentadas, desde então, com profundidade e
detalhes cada vez maiores, nas sucessivas edições do Retrato do Brasil.
Foram tema central de debates e atos de protesto contra a forma como se
deu o julgamento do “Mensalão”. Até agora, não foram contestadas por
nenhum ministro do Supremo, nenhum dos procuradores-gerais da República
envolvidos no caso, nenhum dos jornais ou jornalistas que defendem a
tese do “desvio de dinheiro público”. Todos usam, como defesa, o
silêncio e a inércia.
Eleições e caixa 2
Ao desprezarem a investigação de crime eleitoral e
optarem pela tentativa de caracterizar desvio de dinheiro público,
ministros e procuradores fizeram uma opção política e de, digamos, marketing pessoal. Desvio atrai manchetes e holofotes, além de evocar cadeia.
Afirmar que a AP-470 tratou do “mais atrevido caso de corrupção da
História” reforça a tese, sempre repetida pelos jornais e TVs, de que o
Brasil seria melhor se jamais tivesse sido governado pela esquerda. Em
contraste, caixa dois de campanha parece coisa banal e corriqueira, algo que todos os partidos praticam, assunto desimportante. Será?
O economista Ladislau Dowbor, professor da PUC-SP e
consultor de diversas agências da ONU, tem se empenhado em demonstrar o
contrário. Numa série de artigos e entrevistas publicados nos últimos
meses (inclusive em Outras Palavras), ele sustenta que o modelo
empresarial de financiamento dos partidos e dos políticos, no Brasil, é a
principal causa do esvaziamento da democracia, do sequestro da política
pelo poder econômico e do enriquecimento ilícito dos governantes. Sem
desmontar este modelo, diz Ladislau, combater a corrupção será sempre
uma caça catártica – porém vã – a bodes expiatórios.
Nas “sociedades de espetáculo”, altamente midiatizadas, explica
o professor, eleger um político tornou-se extremamente caro; e possuir
recursos para bancar muitos mandatos assegura enorme poder político. Em
1997, o Congresso Nacional modificou a legislação eleitoral e autorizou
as empresas a investir em partidos e políticos. Desde então, os gastos
globais dos candidatos nas eleições dispararam. Segundo o TSE, saltaram
de R$ 827 milhões, em 2002, para R$ 4,09 bilhões, em 2012 – um aumento
de 591%, em apenas uma década – isso, sem contar o caixa dois. “Eleger
um simples deputado, em qualquer Estado do país, não custa menos de R$
2,5 milhões”, diz Ladislau.
Quem é capaz de mobilizar estes recursos? Uma pesquisa
dos professores Wagner Praion Mancuso (USP) e Bruno Speck (Unicamp)
revela que “os recursos empresariais ocupam o primeiro lugar entre as
fontes de financiamento de campanhas eleitorais brasileiras. Em 2010,
corresponderam a 74,4% de todo dinheiro aplicado nas eleições”. Mais uma
vez, sem contar os recursos transferidos “por fora”. Quais os efeitos
deste vínculo entre pode econômico e mandatos?
Ladislau retorna: “Os interesses manifestam-se do
lado das políticas que serão aprovadas – por exemplo, contratos de
construção de viadutos e de pistas para mais carros, ainda que se saiba
que as cidades estão ficando paralisadas. As empreiteiras e as
montadoras agradecem. Do lado do candidato, apenas assentado, já lhe
aparece a preocupação com a dívida de campanha que ficou pendurada, e a
necessidade de pensar na reeleição. Quatro anos passam rápido. Entre
representar interesses legítimos do povo – por exemplo, mais transporte
coletivo, mais saúde preventiva – e assegurar a próxima eleição, ele […]
sabe quem manda, está preso numa sinuca”.
As consequências deste controle são claras. Ladislau fornece
um exemplo, entre inúmeros. “Existe uma bancada Friboi no Congresso,
com 41 deputados federais e sete senadores. Dos 41 deputados financiados
pela empresa, só um, o gaúcho Vieira da Cunha, votou contra as mudanças
no Código Florestal. O próprio relator do Código, Paulo Piau, recebeu
R$ 1,25 milhão de agropecuárias (…) Com o financiamento corporativo,
temos bancadas ruralista, da grande mídia, das montadoras, dos grandes
bancos, das empreiteiras, e temos de ficar à procura de uma bancada do
cidadão”...
De que forma este fenômeno se desdobra também em
lesão direta aos cofres públicos? “Uma dimensão importante deste círculo
vicioso”, arremata
Ladislau, “é o sobrefaturamento. Quanto mais se eleva o custo
financeiro das campanhas, mais a pressão empresarial sobre os políticos
se concentra em grandes empresas. Quando são poucas, e poderosas, e com
muitos laços políticos, a tendência é a distribuição organizada dos
contratos, que reduz as concorrências públicas a simulacros e permite
elevar radicalmente o custo dos grandes contratos. Os lucros assim
adquiridos permitirão financiar as campanhas da eleição seguinte”...
Jogando para a plateia
Nas eleições de 2012, o PT foi, segundo o TSE,
o partido que mais recebeu financiamento privado para suas campanhas:
R$ 255 milhões. As grandes empresas são pragmáticas: investem em quem é
mais capaz de reunir votos, eleger-se e defender seus interesses:
importa-lhes pouco a cor partidária. A entrada dos petistas no circuito
das campanhas sustentadas por empresas é, porém, uma das explicações
centrais para o retrocesso político do partido – reconhecido por algumas
de suas lideranças, como o governador gaúcho Tarso Genro. Nas eleições
para o Executivo, os choques são mais crus. Mas na atuação parlamentar,
por exemplo, estão se dissolvendo as diferenças – antes nítidas – entre
as bancadas petistas e as dos partidos conservadores.
Também por isso, a conduta dos
procuradores-gerais e da maioria dos ministros do STF, no julgamento da
AP-470, foi grotesco. Tendo em mãos um caso que poderia revelar alguns
dos mecanismos centrais de corrupção da política – desde que investigado
a fundo –, eles optaram pela busca fácil e preguiçosa de “culpados”
individuais, por “jogar para a plateia”, por buscar sem descanso os
holofotes. Ao fazê-lo, cometeram, como se viu, injustiças e erros
primários.
Se o ministro Celso de Mello optar, nesta
quarta-feira, por reconhecer o direito dos réus aos embargos
infringentes, haverá alguma esperança de reparar o estrago.
Tecnicamente, o espaço para corrigir as sentenças é exíguo. No plano do
debate político, serão outros quinhentos. Reaberto o caso, é provável
que as revelações factuais recentes feitas pelo trabalho jornalístico de Raimundo
Pereira e Lia Imanishi ganhem novo destaque. E – muito mais importante –
talvez surja uma brecha para argumentar que o resgate da democracia
começa com uma vastíssima reforma política, não com um espetáculo ritual
de encarceramento.
1Raimundo Pereira criou e editou Opinião (1971-1977) e Movimento (1975-1980), sobre o qual há um livro,
disponível na Internet. Antes disso, dirigiu, entre outros trabalhos, a
edição especial da revista Realidade sobre a Amazônia, considerada por alguns como “a maior de todas as reportagens da imprensa brasileira”.
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