Prevejo duas coisas: uma que quando exumarem esse processo do mensalão daqui a alguns anos, como agora fazem com os restos mortais do Jango Goulart, descobrirão traços de veneno, injustiças e descalabros que hoje não dão na vista ou são ignorados. O que só desgravará alguns dos condenados quando não adiantar mais nada"( Luiz Fernando Veríssimo, em sua coluna no panfleto da família Marinho)
Condenados a prisão em regime semiaberto, José Genoíno e José Dirceu enfrentam tratamento inadequado
A prisão de 11 condenados do mensalão foi acompanhada de momentos
preocupantes. Procurando as raízes do que está acontecendo, é possível
chegar a articulações conservadoras que se mobilizavam contra os
direitos humanos e garantias individuais – quando a democratização do
país sequer completara seu curso. Vamos contar a história pelo começo,
porém.
Ao serem conduzidos para o presídio da Papuda, José Dirceu e José
Genoíno estão sendo submetidos ao regime fechado, quando deveriam
cumprir pena por regime semiaberto.
A medida já provocou protestos formais dos advogados, para quem os
condenados não poderiam permanecer mais do que 12 horas seguidas na
prisão.
É realmente inaceitável levar os presos para um estabelecimento que não
possui instalações onde possam cumprir a pena nas condições definidas na
própria pena atribuída pelo STF. O que se quer: um passeio de avião,
novas fotos e imagens?
Em condições normais, me diz um dos advogados dos réus, uma atitude
desse tipo se resolveria com um habeas-corpus, capaz de levar a
libertação imediata dos prisioneiros.
Mas é difícil pensar que vivemos tempos normais quando o presidente do
Supremo afirma que “quando as instituições se degradam, o País se
degrada”, não é mesmo?
Outro drama envolve a saúde de Genoíno. Ele sofre de cardiopatia grave.
Recentemente ficou no limite entre a vida e a morte, da qual escapou,
segundo médicos, por uma questão de minutos, a bordo de uma ambulância
que o conduziu a um hospital. Com base na avaliação médica, Genoíno já
entrou com pedido de aposentadoria na Câmara de Deputados.
Transportado de São Paulo para Brasília, o deputado enfrentou situações complicadas, descreve uma reportagem do UOL:
“Ainda no aeroporto de Congonhas (SP), minutos antes de entrar na
aeronave, o ex-presidente do PT foi examinado por um médico da PF que
emitiu um laudo informando que ele tinha plenas condições de fazer a
viagem.
No entanto, antes de chegar a Belo Horizonte, onde embarcaram mais sete
presos, entre eles o empresário Marcos Valério, Genoíno se sentiu mal
devido à pressão alta. Quando a aeronave pousou em BH, às 15h17, uma
ambulância ficou estacionada na pista e Genoíno foi medicado. Por essa
razão, o voo decolou para Brasília com um pequeno atraso.
Procurado para comentar o ocorrido, Marco Aurélio de Carvalho,
coordenador do setorial jurídico do PT e um dos advogados que acompanhou
Genoíno desde ontem, afirmou que o presidente do STF (Supremo Tribunal
Federal), Joaquim Barbosa, "assumiu o risco de conduzir José Genoíno a
Brasília, mesmo em virtude do estado clínico que o acomete, o que
comprova os excessos na condução do mandado de prisão".
Temos então, dois absurdos acumulados. Para levar Genoíno para um
presídio onde não é possível cumprir a pena que recebeu, ele foi
conduzido a uma viagem em situação de risco e teve de ser medicado.
Qual a necessidade?
Do ponto de vista do cumprimento correto das penas, nenhuma. A razão é política.
O grave é que o tratamento inadequado, estimula cenas agressivas de
cidadãos contra condenados, como aconteceu no momento em que eram
conduzidos em São Paulo ou Belo Horizonte, repetindo situações que já
haviam ocorrido nas eleições de 2010 e 2012, atingindo até mesmo o
ministro Ricardo Lewandovski.
Não vamos entrar no mérito das conclusões do julgamento. Nem no conteúdo
das denuncias que levaram a produção de penas altíssimas. Já discuti
isso várias vezes.
Mas eu acho óbvio que este comportamento agressivo recebe estímulos de cima.
Num recurso de marketing primário, as prisões foram realizadas no dia da proclamação da República.
Mesmo que os condenados fossem culpados de todos os crimes que lhes são
atribuídos – hipótese com a qual estou em desacordo absoluto – eles têm
direito a um tratamento respeitoso.
Não é difícil associar essa situação com o ambiente criado no STF pelo
presidente/relator Joaquim Barbosa. Seu comportamento agressivo e
truculento em relação a colegas é um fato amplamente conhecido.
O problema é que essas reações agressivas não envolvem, apenas, uma
questão de comportamento e boas maneiras. Implicam, também, num gestual
pouco civilizado, de alto grau de violência – ainda que simbólica – que
intimida e até silencia seus interlocutores.
Na última sessão do STF, o ministro Teori Zavaski só precisou questionar
uma proposição de Joaquim Barbosa para ser acusado de cometer uma
“chicana”, expressão que, conforme Houaiss, pode ser equivalente a
“tramoia”, enquanto “chicaneiro” é definido como “trapaceiro.”
No mesmo dia, numa reação típica de quem sentia-se intimidada depois de
expressar uma diferença em relação às opiniões de Barbosa, uma das
ministras chegou a exibir gestos infantilizados para esclarecer que eram
divergências ínfimas.
Sendo quem é – representante de um dos poderes da República – esse
comportamento se transmite, naturalmente, a várias camadas da sociedade.
Outros fatores contribuem na mesma direção. Envolvidos diretamente na
produção das denuncias que alimentaram o escândalo, a maioria dos meios
de comunicação tornou-se parte interessada no caso.
A dificuldade é que oito anos depois das primeiras notícias, continua
apresentando os fatos da ação penal 470 como se toda a verdade se
encontrasse nas manchetes de 2005. A realidade é que de lá para cá
surgiram fatos novos e descobertas consistentes, que podem colocar em
dúvida a versão inicial.
Para um esquema que teria desviado R$ 73,8 milhões do Banco do Brasil,
uma auditoria da própria instituição assegura que não houve desvio de
dinheiro público.
Contra a visão de que o esquema se baseava em empréstimos fraudados, a
Polícia Federal apurou que os empréstimos do Banco Rural para o PT
envolviam recursos verdadeiros, que foram usados para pagar despesas do
partido e, mais tarde, quitados.
Um levantamento simples nos gastos de publicidade mostra que os próprios
meios de comunicação receberam grande parte das verbas que teriam sido
desviadas. Grupos como Globo, Folha, Estado, Abril e quem mais você
lembrar das empresas de comunicação do país estão entre os principais
destinatários. O departamento comercial dessas empresas jamais negou o
recebimento destes recursos, especialmente volumosos.
Nesta situação, para tentar entender e avaliar o que se passou no
tribunal, a maioria dos brasileiros só pode interpretar a coreografia
dos ministros.
Não faz ideia de que juristas de valor reconhecido têm críticas a seus
resultados e questionam boa parte das condenações. Não compreende que
existem argumentos sólidos, que permitem acreditar na inocência absoluta
dos condenados em relação aos crimes pelos quais foram condenados.
A truculência ajuda a criar uma novilíngua, onde o direito é visto como
privilégio e toda tentativa de resistir a decisões que podem ser
classificadas como abusivas e arbitrárias não passa de um esforço para
garantir uma posição superior na vida social.
Argumentos sensatos, bem fundamentados, são desqualificados e
descartados como se não envolvessem um direito fundamental da existência
humana, a liberdade.
Essa visão ajuda a formar a convicção popular, assinalada por Hanna
Arendt ao estudar a emergência de processos totalitários na Europa dos
anos 20 e 30, de que “os atos de violência podiam ser perversos, mas
eram sinal de esperteza.”
Falando sobre o universo mental daquele tempo, ela assinala que “o mal, em nosso tempo, tem uma atração mórbida.”
Não é um problema novo para os brasileiros, na verdade.
Em 1987 professor Antônio Flávio Pierucci (1945-2012) fez uma pesquisa
antropológica nos bairros de classe média de São Paulo, que deixou
ensinamentos úteis para o Brasil de 2013.
Num texto chamado As Bases da Nova Direita, o professor assinalava que
esta parcela influente de cidadãos já olhava com desconfiança para os
primeiros avanços da democratização.
O país sequer havia votado em eleições diretas para presidente, a
violência da tortura e das execuções de presos políticos fazia parte da
memória muito recente, mas era possível registrar sinais de
inconformismo com a nova situação. O motivo era uma política de direitos
humanos lançada em São Paulo pelo governador Franco Montoro, um dos
patronos do PSDB, num esforço para enfrentar e controlar atos da
violência policial contra a população pobre e contra presos comuns.
Pierucci apontava para desvios de comportamento típicos: um gosto
especial por autoridades capazes de tomar medidas violentas e abusivas; a
dificuldade de compreender que os direitos à dignidade e o respeito a
lei precisam valer para todos – inclusive para pessoas condenadas pela
Justiça – sob o risco de, aí sim, ser razoável falar em “degradação das
instituições.”
Pesquisando a visão de mundo dessas pessoas, Pierucci anota: “Querer
vê-los tendo arrepios, é pronunciar as palavras direitos humanos. Diante
de uma pergunta dessas, eles e elas se inflamam, se enfurecem,”
escreve.
“É interessante e decepcionante que a associação primeira do sintagma
direitos humanos seja com a ideia de ‘mordomia’ para os presos. ‘’
Sempre citando palavras recolhidas junto a homens e mulheres daquela
época, o professor relata que, na visão dessas pessoas, o país assistia a
uma “inversão de valores.”
Elas dizem que, enquanto o bandido é “endeusado, embora seja assassino,
seja estuprador, seja o diabo”, e precisa de um “banhozinho de sol,
precisa de champanhe francês, precisa de mulher”, o “policial é
massacrado. Se ele dá um tiro por acaso, ele é massacrado e o bandido
não, é exaltado.”
Já em 1987, o professor antecipava: “a nova direita prima por
diagnosticar a crise do presente como uma crise primeiramente cultural,
uma crise de valores e de maneiras. Crise moral.”
Afirma Pierucci, ainda: “No Brasil metropolitano, há um acúmulo de
tensões de toda ordem extremamente propício à arregimentação de cruzadas
moralistas.”
É curioso observar porém que, um quarto de século depois, assistimos a um lamentável nivelamento por baixo.
O país e todos os seus governos não apenas fracassaram no esforço
necessário para enfrentar abusos inaceitáveis contra a população pobre,
resistindo a toda proposição capaz de democratizar o aparato policial
em atividade.
Através da criminalização da atividade política a partir de uma visão
moralista da atividade política, um dos traços fundamentais da ação
penal 470, convive-se agora com abusos contra homens públicos, com
biografia respeitável e um histórico de valor.
Mesmo que Dirceu e Genoíno fossem culpados de todos crimes que lhe são
atribuídos – o que está longe de demonstrado para além de toda dúvida
razoável, como define a tradição do Direito – não há motivo para
justificar qualquer falta de respeito.
Mas é isso o que acontece. Temos comentaristas pródigos na produção de
frases marotas de lamento diante das oportunidades perdidas para
humilhar, envergonhar e machucar – até fisicamente – os condenados.
Mesmo regras, criadas pelo próprio STF, que limitam bastante o uso de
algemas no momento da prisão, são criticadas, nem sempre com a sutileza
que se poderia imaginar.
Os condenados não se “apresentaram” a polícia, dizem. Se “entregaram,”
expressão que procura esconder toda tentativa de preservar a própria
dignidade numa hora tão difícil para toda pessoa que tem a força do
Estado contra si.
Como bons “chicaneiros,” apenas “querem ganhar” tempo e “protelar”.
Sempre lembrando que se vive num país onde os direitos humanos são uma
meta que nunca esteve ao alcance maioria da população, o que se assiste é
uma regressão histórica. Num país que não avançou o suficiente, anda-se
para trás.
O abuso e a falta de respeito não apontam para o progresso. Ajudam estimular e saciar o ressentimento.
Explicando o sentido das execuções públicas nas sociedades europeias do
século XVII e XVIII, quando pessoas eram torturadas em praça pública
antes de perder a vida, a historiadora Lynn Hunt explica na obra A
Invenção dos Direitos Humanos que aquele espetáculo mórbido tinha
objetivos políticos claros: “as dores do corpo não pertenciam
inteiramente à pessoa condenada individual. Essas dores tinham
propósitos mais elevados de redenção e reparação da comunidade.”
Falando do comportamento da população, observadores mencionados por
Hunt observam que havia no rosto da plateia uma “espécie de Alegria como
se o espetáculo que tinham presenciado lhes proporcionasse Prazer em
vez de Dor.”
Ela também cita o jornal Morning Post que critica a “indecência
extremamente desumana” de uma “multidão impiedosa”, que gritava, ria e
agredia aqueles “poucos que manifestavam uma compaixão apropriada pelas
desgraças de seus semelhantes.”
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