Do O Globo
CHICO OTAVIO | JULIANA DAL PIVA
Stuart Angel era dirigente do MR-8 e foi preso por agentes da Aeronáutica em em junho de 1971 Reprodução
RIO - Pardo, estatura mediana,
suboficial. Por mais de quatro décadas, essas foram as únicas
informações conhecidas sobre um dos principais torturadores dos porões
do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa), que
funcionava junto à Base Aérea do Galeão. Presos políticos que estavam na
carceragem à época denunciam com frequência a desenvoltura com que o
suboficial “Abílio Alcântara”, de codinome “Pascoal”, participava dos
interrogatórios sob tortura nas masmorras do Cisa. E dos guerrilheiros
que por ali passaram e conheceram “Pascoal”, apenas um jamais saiu:
Stuart Angel Jones. O ex-preso político Alex Polari de Alverga denuncia
há 42 anos que presenciou o momento em que o amigo foi preso por agentes
da Aeronáutica, na manhã de 14 de maio de 1971, em uma região do
Grajaú, na Zona Norte do Rio. Entre eles, “Pascoal.”
“Abílio Alcântara”, porém, nunca
existiu. Serviu apenas para esconder a verdadeira identidade do sargento
Abílio Correa de Souza. Após o cruzamento de depoimentos de ex-presos
com informações em bancos de dados nacionais e internacionais, O GLOBO
chegou ao verdadeiro nome sob o qual se escondia o agente. Souza chegou a
fazer cursos de inteligência de combate e contraespionagem na conhecida
Escola das Américas, no Forte Gulick, no Panamá, em 1968. De acordo com
o relato dos presos, ele seria o braço-direito do coronel Ferdinando
Muniz de Farias, o “dr .Luis” — homem de confiança do brigadeiro Carlos
Affonso Dellamora, comandante do Cisa. Ambos já amplamente denunciados
por Alex Polari.
Agente estudou contraespionagem na Escola das Américas
Souza, de acordo com uma nova
testemunha dos momentos finais da vida de Stuart, foi o último agente a
falar com o filho da estilista Zuzu Angel, em sua agonia. A ex-presa
política Maria Cristina de Oliveira Ferreira conta que não chegou a ver,
mas ouviu os gemidos do dirigente do Movimento Revolucionário 8 de
Outubro (MR-8), sua organização guerrilheira, ao longo da madrugada.
Stuart murmurava seguidamente “vou morrer, vou morrer”. Em determinado
momento, o suboficial Souza se aproximou.
— O “Pascoal" falou pra ele: “Deixa de
frescura, Paulo (codinome de Stuart no MR-8). Você não vai morrer ainda
não. Toma aqui um melhoral”. Pouco depois ele silenciou e eu ouvi o
barulho semelhante à retirada de um corpo — revelou Maria Cristina.
Ela nunca foi ouvida antes sobre o assunto por ser acusada por ex-companheiros de militância de colaboração com o regime.
— Depois do que aconteceu com Stuart, a
carceragem foi imediatamente esvaziada. Todos nós fomos transferidos
para outros lugares — recorda-se.
Outro preso também confirma a
liberdade com que Souza transitava pelos corredores da carceragem.
Manoel Henrique Ferreira contou em relatório que integra o acervo do
Brasil Nunca Mais que “Pascoal” pediu-lhe que reconhecesse a foto na
carteira de identidade falsa com que Stuart foi preso. Em seguida,
confirmou a prisão, sorrindo.
Outros dois novos nomes de agentes
surgem no caso. Os cabos reformados Luciano José Marinho de Melo e
Cláudio de Almeida Aguiar integravam as equipes do Cisa em 1971. A eles,
foi confiada a missão de fazer o registro de nascimento do filho de uma
presa do órgão, no início de 1972, na 11ª circunscrição de Inhaúma,
apesar de a criança ter nascido no Hospital da Aeronáutica. Os nomes
deles constam na certidão de nascimento como testemunhas.
Segundo outro preso, Luciano atuava
como motorista das equipes de captura e, no dia em que Stuart foi preso,
conduziu o carro no qual ele foi levado para um ponto onde estariam
outros dois militantes do MR-8 — organização da qual Stuart era
dirigente. Como os guerrilheiros não viram o preso, conseguiram sair do
ponto ilesos, apesar do cerco.
Procurado, Luciano disse que foi
apenas motorista do gabinete do ministro da Aeronáutica até 1984,
emprestado ao brigadeiro Dellamora exclusivamente para o registro da
criança. Ele pediu e obteve anista política em 2005 com base à portaria
n.º 1.104-GM3/1964, que limitou o serviço dos cabos a oito anos. Desde
2011, o Ministério da Justiça está revisando o processo. O nome de
Claudio é listado como torturador no projeto Brasil Nunca Mais, em um
inquérito de 1970. Aguiar foi procurado em três diferentes endereços
durante um mês, mas não foi localizado.
Entre os outros agentes envolvidos no
desaparecimento de Stuart, pelo menos outros três também estudaram na
mesma escola. O brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, responsável pela
organização e criação do Cisa e então chefe da 3ª Zona Aérea, fez cursos
com nomes semelhantes aos de Abilio Correa de Souza em 1967:
inteligência militar e contraespionagem. Com extenso currículo e 11
condecorações, entre elas a principal da Força, o Mérito Aeronáutico
como Cavaleiro, o coronel Muniz de Farias também fez o Curso de
Informações para Oficiais Superiores nos EUA. O capitão Lucio Valle
Barroso, outro envolvido, estudou inteligência militar para oficiais em
1970 e é apontado como analista de informações do Cisa.
SNI elaborou documento de 167 páginas dando Stuart como morto
Além dos militares da Aeronáutica,
relatos de presos políticos e documentos inéditos localizados nos
acervos do projeto Brasil Nunca Mais e do Arquivo Nacional em Brasília
apontam que os policiais da Delegacia de Ordem Politica e Social do Rio
participaram ativamente das operações de captura de integrantes do MR-8 —
organização que Stuart dirigia — e que antecederam a prisão dele. Dois
são apontados ainda como integrantes da equipe de interrogatório: Jair
Gonçalves da Mota e Mario Borges de Araújo. Este chegou a receber a
Medalha do Pacificador, honraria concedia pelo Exército em 1971.
O GLOBO ainda obteve acesso a um
documento inédito do Serviço Nacional de Informações (SNI) pertencente
ao Arquivo Nacional demonstrando que o desaparecimento de Stuart foi
amplamente documentado pela repressão. O informe número 1.008, produzido
em 14 de setembro de 1971, tem como assunto: “Stuart Angel Jones —
Falecido”. O documento tem conteúdo classificado como confidencial e 167
páginas. “Apenso, encaminho documentação para fins de prontuário
referente ao epigrafado, bem como de outros elementos subversivos
arrolados nos processos de apuração de delitos cometidos por alguns
deles”, informa o texto, que, no entanto, apresenta apenas três páginas.
Na “Informação Nº 4.057”, da Agência
São Paulo do SNI, de 11 de setembro de 1975, o nome de Stuart aparece
listado junto a outros 89 nomes de guerrilheiros mortos seguidos por
datas das mortes. No caso dele, o dia apontado é 16 de maio de 1971,
dois dias depois da prisão. O destino do corpo, no entanto, permanece
desconhecido.
Stuart Angel Jones integrava a direção
do MR-8 e havia participado de diversas ações armadas; o interrogatório
tinha um objetivo claro: descobrir o paradeiro do capitão Carlos
Lamarca.
No fim do ano, a cúpula da Aeronáutica
foi substituída devido a pressões sobre o caso, após as denúncias da
mãe de Stuart, a estilista Zuzu Angel. O desmonte final dos porões do
regime, porém, não cortou os laços dos torturadores de Stuart. Pelo
menos três deles (o coronel Muniz, o sargento Abílio e o cabo Cláudio
Aguiar) trabalharam posteriormente na Transportadora Volta Redonda
(TVR), uma das gigantes no setor do período. A sede regional da empresa,
na Avenida Londres, Bonsucesso, era ponto de encontro dos agentes do
Cisa.
Burnier, Dellamora, Muniz e Abílio já
morreram. Parentes do suboficial foram localizados na Zona Norte do Rio,
mas disseram desconhecer sua atuação na Inteligência da FAB. De acordo
com esses parentes, o agente jamais comentou o trabalho em casa, e a
família nunca teve contato com seus colegas da Base.
A Aeronáutica, que nunca admitiu a
prisão do guerrilheiro, não quis comentar o caso. Por intermédio da
Comunicação Social, informou que os documentos alusivos ao período do
regime já foram entregues ao Arquivo Nacional.
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