A reforma tributária de que o Brasil precisa
Odilon Guedes
Mestre em Economia, professor das Faculdades Oswaldo Cruz. Foi presidente do Sindicato dos Economistas de SP e vereador em São Paulo
Adital
O
mais recente projeto de reforma tributária permanece na Câmara dos
Deputados e, aliás, como ocorreu com todos os outros elaborados nos
últimos anos no Brasil é muito pouco discutido entre os verdadeiros
interessados, que é a maioria do povo brasileiro.
O
debate em torno desse assunto no país acaba centrado em grande parte no
aspecto da diminuição dos impostos porque a carga tributária é alta em
relação aos serviços que o Estado oferece.
Os
que mais defendem a diminuição dessa carga são os empresários, baseados
no argumento de que pagando muitos impostos seus negócios são
dificultados. Fica praticamente excluída do debate a maioria da
população brasileira e, principalmente, sua camada mais pobre -
proporcionalmente a que paga mais - que não tem a menor idéia de quanto
eles pesam no seu bolso.
Este artigo visa contribuir para a discussão a respeito do tema e apresenta alguns dados que permitem visualizar o tipo de reforma que o Brasil precisa não só para tornar mais justa a carga tributária, mas também a distribuição de riquezas.
Luta histórica
A questão tributária tem sido causa ou pretexto de inúmeras revoluções e transformações sociais na história da humanidade.
Em
1215, ano em que foi criada a constituição inglesa, um dos pontos
centrais definidos entre o Conselho de Nobres e João Sem Terra,
baseava-se no fato de que, dali para diante, não poderia ser criado
nenhum tributo pelo rei sem que o Conselho fosse consultado. Havia
algumas exceções pontuais, como quando fosse feito o primeiro casamento
de sua filha mais velha, ou quando seu primogênito se tornasse
cavaleiro, por exemplo.
Na
mesma Inglaterra, a revolução burguesa que eclodiu na primeira metade
do século XVII teve como um dos motivos a cobrança de tributos. O rei
Carlos I, para reforçar o absolutismo, começou a cobrar impostos que já
haviam caído em desuso, como o ship money. Criado para proteger as
cidades portuárias de ataques piratas, o imposto acabou sendo cobrado
até mesmo nas cidades de interior, onde dificilmente haveria esse tipo
de ataque. O fim do rei foi a sua decapitação.
A
data nacional da independência norte-americana, 4 de julho, faz lembrar
que uma das razões que foram amadurecendo para o início da guerra de
libertação foi a cobrança de impostos como o Sugar Act (1764), que
taxava produtos que não viessem das Antilhas Britânicas; do Stamp Act
(1765), que exigia selagem até de baralhos e dados (posteriormente
revogado); e o Tea Act (Lei do Chá, 1773) que concedia o monopólio desse
comércio à Companhia das Índias Orientais. Este último fato causou
grande revolta, com os colonos americanos se vestindo de índios e
jogando ao mar o chá dos navios da Companhia que estavam ancorados no
porto de Boston.
A
Revolução Francesa, como se sabe, teve como um dos estopins o aumento
de impostos decretado pelo rei para enfrentar a grave crise que o país
enfrentava após a derrota para a Inglaterra na Guerra dos Sete Anos.
No
Brasil, a questão da cobrança de impostos marcou profundamente algumas
rebeliões ao longo da história. A primeira delas foi a Inconfidência
Mineira, tentativa de libertar o Brasil de Portugal, que resultou no
enforcamento do herói Tiradentes e no desterro das lideranças envolvidas
no movimento. O motivo principal dessa revolta foi a "derrama", isto é,
a cobrança de impostos atrasados feita pelos colonizadores portugueses
aos moradores de Minas Gerais.
Entre
as décadas de 1830 e 1840 o Brasil foi palco do mais longo conflito
armado em seu território, a Guerra dos Farrapos, na então província do
Rio Grande do Sul. A causa central desse conflito foi a taxação do
charque (carne-seca) rio-grandense pelo governo imperial, enquanto os
produtos que vinham do Uruguai e da Argentina estavam isentos desse
imposto. A elite gaúcha estava sendo profundamente prejudicada em seus
interesses porque perdia competitividade no mercado interno.
No
fim do século XIX um dos pretextos para o exército brasileiro cercar e
destruir a comunidade de Canudos (interior da Bahia) foi o fato de seu
líder, Antonio Conselheiro, pregar aos habitantes de vários municípios
do interior do Nordeste brasileiro o não pagamento dos impostos
instituídos pelo recente regime republicano.
Os pobres pagam mais
A
questão da injustiça tributária no Brasil é gravíssima e podemos dizer
com toda a segurança que as camadas mais pobres da população pagam
proporcionalmente mais impostos no país. Vários estudos feitos pelo
UNAFISCO (órgão dos auditores fiscais da Receita Federal) e pela
Universidade de São Paulo (USP) comprovam claramente tal situação. Esses
estudos mostram que as pessoas cuja renda familiar alcança até dois
salários mínimos comprometem 48,9% de seus recursos com o pagamento de
tributos. Enquanto famílias que têm uma renda superior a 30 salários
mínimos comprometem apenas 26,3%.
Esse
brutal descompasso ocorre porque mais de 50% da carga tributária no
país é indireta, isto é, incide sobre o consumo. Na maioria dos países
capitalistas desenvolvidos a carga tributária direta é muito mais
acentuada que a nossa, recaindo sobre a renda, a riqueza, a propriedade e
a herança.
Os
dados apresentados pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário
(IBPT) ilustram a regressividade na cobrança de tributos em nosso país.
Por exemplo, do total que se paga da conta de luz, 45,8% são compostos
por tributos. Assim, se um cidadão gastar R$ 100,00 de energia, R$ 45,80
vão para os cofres públicos, independentemente do fato de ele ganhar um
salário mínimo ou R$ 50 mil por mês. Em relação a um quilo de açúcar, a
carga tributária é de 40,5%, e sobre o litro de gasolina incide 53,0%.
Em
relação aos tributos diretos sobre a renda, a riqueza, a propriedade e a
herança, a taxação de impostos é muito baixa, especialmente quando
comparada a de outros países.
Imposto de renda
No
Brasil existem somente duas faixas de cobrança, 15,0% e 27,5% (*). Para
salários até R$ 1.372,81 há isenção. Para os salários entre R$ 1.371,82
até R$ 2.743,25 a alíquota é de 15% e para salários acima de R$
2.745,25 a alíquota é de 27,5%. Nesse contexto é importante lembrar que,
entre 1983 e 1985 havia 13 faixas com variação de 0% a 60% nas
alíquotas, com intervalo de 5%.
Para
efeito comparativo, nos EUA existem cinco faixas variando as alíquotas
de 15% a 39,6%; na França existem 12 faixas com variação das alíquotas
entre 5% e 57%; na Holanda há quatro faixas com variação de 6,2% a 60%
das alíquotas.
Por
outro lado, nos países denominados em desenvolvimento como o Brasil,
alguns exemplos mostram a seguinte situação: no Chile existem seis
faixas, variando as alíquotas entre 5% e 45%; na Argentina são sete
faixas, variando as alíquotas entre 9% e 35% e na Bolívia há cinco
faixas, variando a alíquota de 15% a 30%. (Fonte: Waterhouse &
Coopers/Unafisco Sindical).
Imposto sobre herança
O
imposto sobre herança no Brasil é definido pelo artigo 155, Inciso I da
Constituição Federal no qual consta que a responsabilidade pelo
estabelecimento das alíquotas é dos Estados. Em São Paulo, essa alíquota
é de 4%.
Estabelecendo
uma comparação com outros países, constata-se que, na Inglaterra esse
imposto é cobrado há mais de 300 anos. Após a morte da princesa Diana,
os jornais ingleses noticiaram que o fisco cobrou U$ 15 milhões dos U$
30 milhões deixados para seus filhos. Segundo matéria da revista VEJA
(21/11/2007) Churchill, o conservador primeiro ministro inglês que
conduziu a Inglaterra na Segunda Guerra mundial, dizia que o imposto
sobre a herança era infalível para evitar a proliferação de "ricos
indolentes".
Nos
EUA o imposto sobre a herança tem uma alíquota de 47% para fortunas
acima de US$ 1,5 milhão e no Japão a alíquota é de 70%. (Fonte:
www.legiscenter.com.br)
Os
dados acima demonstram como esse imposto é extremamente baixo no
Brasil. Há, portanto, uma ampla margem para aumentar sua cobrança tendo
em vista ainda o alto índice de concentração de riqueza no país.
Imposto sobre a propriedade
Outra
distorção flagrante pode ser notada na arrecadação dos impostos sobre a
propriedade existentes no Brasil: o Imposto sobre a Propriedade Predial
e Territorial Urbana, o IPTU, de âmbito municipal e o Imposto
Territorial Rural, o ITR, de âmbito federal. Em relação a este último, a
situação beira a incredulidade. Para exemplificar, nos doze meses de
2007 foram arrecadados, em todo o território nacional, cerca de R$ 379
milhões, segundo dados da Receita Federal. Um montante cujo valor é
menor do que dois únicos meses de contribuições recolhidas do IPTU da
cidade de São Paulo.
Diante
desses números, nunca é demais lembrar que, de acordo com dados do
Ministério do Desenvolvimento Agrário, em um universo de cinco milhões
de propriedades, 26 mil, ou menos de 1% do total, detêm 46% das terras.
Além disso, 55 mil imóveis classificados como grandes propriedades
improdutivas detêm 120 milhões de hectares. Paralelamente, o chamado
agronegócio, que movimenta bilhões de reais em suas transações, utiliza
cada vez mais terras para plantio de cana-de-açúcar e o capital
internacional avança na compra de terras na Amazônia e em todo
território nacional. Pode-se então concluir que, na prática, os grandes
latifundiários e proprietários rurais na prática, não pagam esse tipo de
imposto no país.
Imposto sobre grandes fortunas
Como
todos sabem, o Brasil figura entre as 12 economias mais ricas do mundo.
O grande problema é a extrema concentração dessa riqueza. Dados
publicados pelo economista Márcio Pochmann mostram que há no país cinco
mil famílias que detêm um patrimônio da ordem de US$ 250 bilhões. Por
outro lado, o ministro de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira
Unger, demonstra num estudo que 70% da dívida pública do Brasil, hoje na
casa dos R$ 1,3 trilhão, encontra-se nas mãos de 30 mil famílias. Em
2007, o pagamento dos juros dessa dívida foi cerca de R$ 160 bilhões e,
logicamente, 70% desse valor ficaram em posse daquelas 30 mil famílias.
O
Atlas da Exclusão Social - Os Ricos no Brasil (Cortez, 2004) é outra
referência importante onde se demonstra a enorme concentração da renda e
riqueza em nosso país. É, portanto, mais do que urgente a aprovação do
imposto sobre as grandes fortunas.
Características da reforma
Diante
desse quadro totalmente desequilibrado e injusto, pode-se refletir
sobre o tipo de reforma tributária de que a população brasileira
precisa. Logicamente, não se deve ignorar que são importantes as
definições sobre a cobrança do ICMS no Estado que produz uma mercadoria
ou onde ela é consumida, sobre o número de alíquotas desse imposto e do
IPI ou as discussões referentes à criação do Imposto sobre o Valor
Agregado (IVA). Mas essas questões precisam estar submetidas a decisões
sobre as características básicas da reforma pretendia.
Muitas
dessas características vêm sendo propostas por vários especialistas da
área tributária. Eles se preocupam com os problemas sociais do Brasil e
percebem claramente a necessidade de se fazer justiça social utilizando
como um dos instrumentos importantes a cobrança de tributos.
Adam
Smith já afirmava, quando escreveu História da Riqueza das Nações, que
"os súditos de todo Estado deveriam contribuir para sustentar o governo,
tanto quanto possível em proporção às suas respectivas capacidades"
(Smith, 1986, p. 366).
Uma
questão preliminar a ser destacada e definida antes de se discutir as
propostas é autorizar a progressividade dos impostos como determina a
Constituição Federal, no parágrafo 1º do artigo 145. Isto porque a
progressividade é um instrumento de importância fundamental para se
fazer justiça tributária.
- Redução de tributos sobre o consumo e isenção sobre a cesta básica
Uma das vertentes que a reforma a ser votada deve considerar, é a redução da carga tributária sobre o consumo sendo esta medida extremamente positiva porque diminui a regressividade na cobrança de impostos e beneficia a classe média e principalmente a população de baixa renda com a melhoria do seu poder aquisitivo. Por outro lado, a isenção de cobrança de impostos indiretos na cesta básica também é de grande importância porque tem o efeito de diminuir o custo de vários produtos de consumo popular, o que permite indiretamente a elevação da renda desse setor da população e possibilita uma melhoria em sua qualidade de vida.
Uma das vertentes que a reforma a ser votada deve considerar, é a redução da carga tributária sobre o consumo sendo esta medida extremamente positiva porque diminui a regressividade na cobrança de impostos e beneficia a classe média e principalmente a população de baixa renda com a melhoria do seu poder aquisitivo. Por outro lado, a isenção de cobrança de impostos indiretos na cesta básica também é de grande importância porque tem o efeito de diminuir o custo de vários produtos de consumo popular, o que permite indiretamente a elevação da renda desse setor da população e possibilita uma melhoria em sua qualidade de vida.
- Aumento da taxação sobre a renda, a riqueza, a propriedade e a herança
A outra vertente deve se apoiar na taxação de forma mais acentuada e progressiva da renda, da riqueza, da propriedade e da herança proporcionando a abertura de um amplo espaço para se fazer justiça social. A adoção de tal medida compensará a perda dos impostos em decorrência da diminuição dos tributos sobre o consumo e da isenção da cesta básica. Além disso abrirá a possibilidade da diminuição da carga tributária incidente sobre pequenos e médios produtores e também sobre ramos industriais que atendam aos interesses da sociedade brasileira.
A outra vertente deve se apoiar na taxação de forma mais acentuada e progressiva da renda, da riqueza, da propriedade e da herança proporcionando a abertura de um amplo espaço para se fazer justiça social. A adoção de tal medida compensará a perda dos impostos em decorrência da diminuição dos tributos sobre o consumo e da isenção da cesta básica. Além disso abrirá a possibilidade da diminuição da carga tributária incidente sobre pequenos e médios produtores e também sobre ramos industriais que atendam aos interesses da sociedade brasileira.
Em
relação ao imposto de renda a proposta que defendemos é aumentar o
número de faixas e a amplitude de sua cobrança. Pode-se estipular a
cobrança a partir de um patamar de R$ 1.987,51 que é o salário mínimo
definido pelo DIEESE para maio de 2008 e criar 12 faixas, com variação
de 5% a 60% nas alíquotas, com intervalo de 5%, semelhante ao que
ocorria em nosso país entre 1983 e 1985.
Ainda
em relação ao imposto de renda, é necessário destacar que há outras
questões a serem discutidas e que precisam ser alteradas como, por
exemplo, a atual isenção sobre a distribuição de lucros para sócios das
empresas, tanto no Brasil como no exterior; a isenção para remessa de
lucros etc.
Em
relação à propriedade, definir que a cobrança desse tipo de imposto
tanto o IPTU quanto ao ITR seja feita de forma progressiva em todo o
país. Em relação ao ITR, deixar público porque a arrecadação desse
imposto é irrisória e avançar do ponto de vista de que os grandes
proprietários rurais e o agronegócio definitivamente passem a pagar
impostos sobre suas propriedades.
Quanto
ao imposto sobre herança, nossa proposta é elevar sua alíquota de forma
progressiva, pois, como vimos, ela é baixíssima no Brasil. Em razão da
alta concentração de riqueza que há em nosso país, deveríamos ter como
referência a tributação estabelecida na Inglaterra e nos EUA (cerca de
50%), o que possibilitaria progredir na ampliação da arrecadação,
diminuir a regressividade da carga tributária e avançar do ponto de
vista da justiça social.
O
imposto sobre grandes fortunas (IGF), que se encontra previsto na
Constituição Federal de 1988, segundo proposta do economista Amir Khair,
poderia ser cobrado de forma progressiva, arbitrando-se um nível mínimo
de isenção, incidindo através de alíquota reduzida sobre o valor do
patrimônio declarado no imposto de renda do final do exercício de
pessoas físicas e jurídicas, que exceder o valor da isenção. A proposta
que está tramitando na Câmara dos Deputados prevê que 51,6% do IGF sejam
direcionados para Estados e Municípios.
È
importante destacar em apoio à aprovação desse imposto que dados do FMI
mostram que a riqueza e o PIB mundial atingiram, em agosto de 2007, US$
190 trilhões e US$ 48 trilhões respectivamente, ou seja, a riqueza é
quatro vezes superior ao PIB. O Brasil apresenta, como já reiterado, uma
das mais perversas distribuições de renda e riqueza do planeta. Diante
desse quadro podemos deduzir que entre nós a concentração de riqueza
deve ser bem maior do que a apresentada pelo FMI. Portanto, é urgente a
aprovação do IGF em nosso país.
Em
síntese, alinhamos as questões que, em nosso entender, são vitais na
elaboração de uma autêntica reforma tributária no Brasil,
verdadeiramente capaz de promover maior justiça e igualdade de direitos.
(*) Após o início da atual crise, no final de 2008 o governo definiu uma nova tabela para o Imposto de Renda.
Rendimento em R$ Alíquota %
Até 1.434,59 Isento
De 1.434,60 até 2.150,00 7,5%
De 2.150,01 até 2.866,70 15,0%
De 2.866,71 até 3.582,00 22,5%
Acima de 3.582,00 27,5%
Rendimento em R$ Alíquota %
Até 1.434,59 Isento
De 1.434,60 até 2.150,00 7,5%
De 2.150,01 até 2.866,70 15,0%
De 2.866,71 até 3.582,00 22,5%
Acima de 3.582,00 27,5%
Fonte: http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=37602
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