A União Africana, a Argélia e o Mali
A guerra do Ocidente contra o desenvolvimento da África continua
A descrição clássica da África na mídia corporativa, como um enorme
balaio de guerras sem fim, fome e crianças sem esperança cria a ilusão
de que o continente depende completamente de esmolas ocidentais. Na
verdade, é precisamente o contrário — é o Ocidente que depende de
doações da África. Essas doações têm muitas e variadas formas.
Elas incluem o fluxo ilícito de recursos e os lucros, que
invariavelmente acabam no setor bancário do Ocidente através de uma
série de refúgios fiscais (como documentado por Nicholas Shaxson em Poisoned Wells*).
Outro mecanismo é o da extorsão da dívida, pela qual os bancos
emprestam dinheiro a ditadores militares (frequentemente levados ao
poder com o apoio de governos ocidentais, como o ex-presidente Mobutu,
do Congo), que então ficam com o dinheiro (em geral numa conta privada
do banco emprestador), deixando para o país o pagamento de juros
exorbitantes numa dívida que cresce exponencialmente.
Pesquisas recentes de Leonce Ndikumana e James K Boyce descobriram
que 80 centavos de cada dólar emprestado saem do país que fez o
empréstimo como “fuga de capital” dentro de um ano, sem que tenha
bancado qualquer investimento no país; enquanto isso, 20 bilhões de
dólares por ano são retirados da África em “serviços da dívida” no que
são, essencialmente, empréstimos fraudados.
Outra forma de doação é a pilhagem de minerais. Países como a
República Democrática do Congo são destruídos por milícias armadas que
roubam os recursos naturais do país e os vendem a preços abaixo do
mercado a companhias ocidentais, com a maior parte destas milícias
organizadas em países vizinhos como Uganda, Ruanda e Burundi, que são
por sua vez bancados pelo Ocidente, como regularmente documentado em
relatórios das Nações Unidas.
Finalmente, e talvez mais importante, são os preços pateticamente
baixos pagos pelas commodities africanas e pelo trabalho nas minas ou
no campo, o que efetivamente equivale a um subsídio africano ao padrão
de vida ocidental e aos lucros corporativos.
Este é o papel para a África que foi determinado pelos chefes da
economia capitalista ocidental: fornecedora de recursos e de mão-de-obra
barata.
Manter o trabalho e os recursos baratos depende, primariamente, de
uma coisa: garantir que a África continue subdesenvolvida e empobrecida.
Caso se tornasse mais próspera, os salários aumentariam; se
experimentasse desenvolvimento tecnológico, seria capaz de agregar valor
a seus recursos naturais através de processos manufatureiros antes de
exportá-los, forçando os preços para cima.
Enquanto isso, o roubo de petróleo e minerais depende da manutenção
de estados africanos fracos e divididos. A República Democrática do
Congo, por exemplo — cujas minas produzem dezenas de bilhões em recursos
minerais por ano — conseguiu apenas recentemente recolher num ano
fiscal 32 milhões de dólares em impostos de mineração, por causa da
guerra travada no país por milícias que recebem apoio ocidental.
Vejam abaixo o primoroso documentário assinado pela repórter
Aline Midlej sobre o assalto aos recursos naturais do Congo. Nada a ver
com o jornalismo oficialista que “promove” as relações neocoloniais do
Brasil com a África:
A União Africana, estabelecida em 2002, era uma ameaça a isso tudo:
um continente africano mais unificado, mais integrado seria mais difícil
de explorar. De preocupação especial para os planejadores estratégicos
do Ocidente são os aspectos financeiros e militares da unificação
africana. No plano financeiro, o Banco Central Africano (que emitiria
uma moeda única, o dinar lastreado em ouro) seria uma grande ameaça à
capacidade dos Estados Unidos, Reino Unido e França de explorarem o
continente.
Se todo o comércio africano fosse conduzido em dinares/ouro, isso
significa que os países ocidentais teriam que efetivamente pagar em ouro
por recursos africanos, em vez do que acontece atualmente, quando pagam
com libras, francos ou dólares, que podem ser impressos à vontade em
seus países de origem.
As outras duas instituições financeiras da União Africana — o Banco
de Investimento da África e o Fundo Monetário da África — poderiam
solapar fatalmente a capacidade de instituições como o Fundo Monetário
Internacional de manipular as políticas econômicas de países africanos
através de seu monopólio das finanças.
Como apontou Jean Paul Pougala, o Fundo Monetário da África, com seu
capital inicial planejado de 42 bilhões de dólares, “deverá suplantar
totalmente as atividades africanas do FMI, as quais, com apenas 25
bilhões, foram capazes de colocar todo o continente de joelhos e fazê-lo
aceitar privatizações questionáveis, como forçar países africanos a
trocar monopólios públicos por privados”.
Ao lado destes acontecimentos financeiros potencialmente ameaçadores
existem mudanças na frente militar. A cúpula da União Africana de 2004,
em Sirte, na Líbia, concordou numa Carta Comum de Defesa e Segurança
Africana, que incluia um artigo estipulando que “qualquer ataque contra
um país africano é considerado um ataque ao continente como um todo”, um
espelho da carta da própria OTAN.
Isso foi seguido no ano de 2010 pela criação da Força Africana, com
mandato para implementar a Carta. Claramente, a OTAN ia fazer uma
tentativa de reverter a unidade africana pela força, o tempo estava
acabando.
Ainda assim a criação da Força Africana representava não apenas uma
ameaça, mas também uma oportunidade. Embora houvesse certamente a
possibilidade de a Força se tornar defensora genuína da independência,
resistindo ao colonialismo e defendendo a África contra agressão
imperialista, também havia a possibilidade de que, manuseada da forma
correta, sob uma liderança diferente, poderia se tornar o oposto — uma
força indireta para a contínua subjugação neocolonial sob comando do
Ocidente. O que está em jogo era — e é — muito importante.
Enquanto isso, o Ocidente já tinha posto em andamento preparativos
militares para a África. Seu declínio econômico, somado à ascensão da
China, significava que era mais e mais difícil continuar contando apenas
com chantagem econômica e manipulação financeira para manter o
continente subordinado e fraco.
Compreendendo claramente que seria forçado cada vez mais a apelar
para a ação militar como forma de manter sua dominação, um documento dos
Estados Unidos, publicado em 2002 pelo Grupo de Iniciativa da Política
de Petróleo Africana, recomendou “um novo e vigoroso foco de cooperação
militar norte-americana na África subsaariana, que inclua uma estrutura
de comando sub-unificado que possa produzir dividendos significativos em
matéria de proteção dos investimentos dos Estados Unidos”.
Essa estrutura passou a existir em 2008, com o nome de AFRICOM. Os
custos – econômicos, militares e políticos – da intervenção direta no
Iraque e no Afeganistão, porém – com os custos apenas da guerra do
Iraque estimados em mais de três trilhões de dólares – significavam que o
AFRICOM deveria contar, primordialmente, com tropas locais encarregadas
de lutar e morrer.
O AFRICOM deveria ser um ente coordenador da subordinação dos
exércitos africanos sob uma cadeia de comando Ocidental, o que
transformou os exércitos africanos, em outras palavras, em marionetes do
Ocidente.
O maior obstáculo a esse plano foi a própria União Africana, que
rejeitou categoricamente qualquer presença militar norte-americana em
solo africano em 2008 – forçando o Africom a instalar seu
Quartel-General em Stuttgart, na Alemanha, uma mudança humilhante depois
que o presidente Bush já tinha anunciado publicamente sua intenção de
montar o QG na África mesmo.
O pior estava por vir em 2009, quando o Coronel Kadaffi – o grande
defensor de políticas antiimperialistas no continente – foi eleito
presidente da União Africana.
Sob sua liderança, a Líbia já havia se tornado o principal doador
financeiro da União Africana e estava propondo um rápido processo de
integração do continente, incluindo um exército africano único, além de
moeda e passaportes comuns.
Seu destino agora é claramente de domínio público. Depois de montar a
invasão do país de Kadaffi com base em uma pilha de mentiras ainda
piores do que as que contou a respeito do Iraque, a OTAN reduziu a Líbia
a um estado falido e devastado e facilitou a tortura e a execução de
seu líder eliminando, assim, seu maior oponente.
Por um tempo, pareceu que a União Africana fora domada.
Três de seus membros – Nigéria, Gabão e África do Sul – votaram a
favor da intervenção militar no Conselho de Segurança da ONU e seu novo
presidente – Jean Ping – reconheceu, rapidamente, o novo governo líbio
imposto pela OTAN para denegrir e diminuir as realizações de seu
antecessor. Ele ainda proibiu a assembleia da União Africana de fazer um
minuto de silêncio depois que Kadaffi foi morto.
Mas isso não durou. Os sul-africanos, em particular, rapidamente se
arrependeram do apoio à intervenção e os dois presidentes, Zuma e Thabo
Mbeki, criticaram a OTAN duramente nos meses seguinte.
Zuma argumentou – corretamente – que a OTAN agiu ilegalmente ao
bloquear o cessar-fogo e as negociações que foram exigidas pela
resolução da ONU e negociadas pela UA e com as quais concordara.
Mbeki foi ainda mais longe e argumentou que o Conselho de Segurança
da ONU, ao ignorar as propostas da UA, estava tratando “os povos da
África com total desdém” e que “as forças do Ocidente incrementaram seu
apetite de intervenção no continente, até mesmo com o uso de forças
armadas, para garantir a proteção de seus interesses, sem levar em conta
nossa visão, a visão dos africanos”.
Um diplomata graduado do Ministério das Relações Exteriores da África
do Sul disse que “a maioria dos estados da CDSA (Comunidade de
Desenvolvimento do Sul da África), em particular África do Sul,
Zimbábue, Angola, Tanzânia, Namíbia e Zâmbia, que desempenharam
papel-chave na luta de libertação do sul da África, não estavam
satisfeitas com a maneira com que Jean Ping lidou com o bombardeio da
Líbia por parte da OTAN”.
Em julho de 2012 Ping foi forçado a deixar o cargo e foi substituído –
com apoio de 37 países africanos – pelo doutor Nkosazana Dlamini-Zuma:
ex-ministro das Relações Exteriores da África do Sul e braço direito de
Thabo Mbeki – e claramente alguém que não fazia parte do grupo de
entreguistas de Ping. A União Africana voltou ao controle das forças
comprometidas com a independência genuína.
Porém, a execução de Kadaffi não apenas eliminou um representante
forte da União Africana, mas também uma peça chave da segurança na
região do Saara-Sahel [no norte da África].
Usando uma mistura cuidadosa de força, desafio ideológico e
negociação, a Líbia liderava o sistema transnacional de segurança que
preveniu o avanço de milícias salafitas, como foi reconhecido pelo
embaixador dos Estados Unidos Christopher Stevens, em 2008:
“O governo da Líbia levou agressivamente a cabo operações que interromperam o trânsito de combatentes estrangeiros, com monitoramento mais rígido por ar e terra, portos de entrada, e o apelo ideológico do islamismo radical… a Líbia colabora com estados vizinhos do Saara e da região do Sahel para interromper as viagens de combatentes estrangeiros e de terroristas transnacionais. Muammar Kadaffi recentemente fechou um acordo amplamente divulgado com líderes das tribos Tuareg da Líbia, Chade, Níger, Mali e Argélia, através do qual eles abandonariam aspirações separatistas e o contrabando (de armas e extremistas transnacionais) em troca de apoio financeiro e assistência para o desenvolvimento… nossa avaliação é de que o movimento de combatentes estrangeiros da Líbia para o Iraque e o movimento na direção inversa de veteranos da Líbia diminuiu por conta da cooperação do governo da Líbia com outros países”.
Essa “cooperação com outros estados” se refere à CEN-SAD (Comunidade
dos Estados do Saara-Sahel ), organização lançada por Kadaffi em 1998
com vistas ao livre comércio, livre movimento de pessoas e
desenvolvimento regional para seus 23 estados-membros, mas com foco
principal na paz e na segurança.
Ao mesmo tempo, para contrabalançar a influência de milícias
salafitas, o CEN-SAD desempenhou papel fundamental na mediação de
conflitos entre a Etiópia e a Eritréia, e na região do rio Mano [na
fronteira da Libéria com Serra Leoa], como também nas negociações da
solução duradoura da rebelião no Chade.
A CEN-SAD tinha base em Trípoli e a Líbia era, sem dúvida, força
dominante no grupo. Por sinal a CEN-SAD foi fundamental para a eleição
de Kadaffi como presidente da União Africana em 2009.
A própria eficiência do sistema de segurança foi um golpe duplo para a
hegemonia do Ocidente na África: não somente aproximou a África da paz e
da prosperidade, mas simultaneamente eliminou um pretexto-chave para
intervenção Ocidental.
Os Estados Unidos estabeleceram sua própria Parceria Trans-Saariana
de Anti-Terrorismo (TSCTP), mas como Muatassim Kadaffi (conselheiro de
Segurança Nacional da Líbia) explicou a Hillary Clinton em Washington,
em 2009, a “Comunidade dos Estados do Saara-Sahel, com base em Trípoli, e
a Força Norte Africana tornam supérflua a missão da TSCTP”.
Enquanto Kadaffi estava no poder e dirigia o sistema de segurança
regional mais poderoso e efetivo, as milícias salafitas do norte da
África não podiam ser usadas como “ameaça” para justificar a invasão
ocidental e a ocupação para salvar nações impotentes.
Para conquistar o que o Ocidente diz querer (mas não conseguiu fazer
em lugar algum) – a neutralização do “terrorismo islâmico” – a Líbia
tomou dos imperialistas o pretexto-chave para sua guerra contra a
África.
Ao mesmo tempo, impediram as milícias de cumprirem sua função
histórica para o Ocidente – desestabilizar, como marionetes, estados
seculares independentes (o que foi amplamente documentado pelo excelente
livro Secret Affairs, de Mark Curtis).
O Ocidente deu apoio aos esquadrões da morte salafitas na campanha de
desestabilização da União Soviética e da Iugoslávia com muito sucesso, e
o faria novamente na Líbia e na Síria.
Com a OTAN redesenhando a Líbia como estado falido, o sistema de segurança desmoronou.
Não apenas as milícias salafitas foram armadas pela OTAN, com os
equipamentos militares mais sofisticados, como também tiveram cobertura
para agir livremente e saquear os armamentos do governo líbio e tiveram
acesso a território livre onde puderam se organizar para promover
ataques através da região.
A segurança das fronteiras desmoronou com aparente conivência do novo
governo da Líbia e seus patrocinadores da OTAN, como mostra este
relatório condenatório da empresa de inteligência global Jamestown
Foundation:
“Al-Wigh era uma base estratégica importante para o regime de Kadaffi, localizada perto das fronteiras de Níger, Chade e Argélia. Desde a rebelião, a base passou a ser controlada pelos combatentes da tribo Tubu, sob o comando nominal do Exército da Líbia, e do comandante dos Tubu, Sharafeddine Barka Azaiy, que reclama: “Durante a revolução, controlar essa base era de grande importância estratégica. Nós a liberamos. Agora, nos sentimos negligenciados. Não temos equipamentos suficientes, carros e armas para proteger a fronteira. Apesar de fazermos parte do exército nacional, não recebemos salário”.
O relatório conclui:
“O Conselho Nacional de Governo da Líbia e seu antecessor, o Conselho Nacional Transnacional, fracassaram na tarefa de assegurar esta importante instalação militar no sul e permitiram que grandes extensões da segurança da fronteira no sul se tornassem “privadas”, ficando nas mãos de grupos tribais que são conhecidos por suas práticas de contrabando. Como resultado, isso colocou em risco a segurança da infraestrutura de petróleo da Líbia e a segurança de seus vizinhos. Enquanto a venda e o transporte de armas da Líbia se torna uma mini-indústria na era pós Kadaffi, o grande volume de dinheiro disponível para a Al Qaeda no Magrebe Islâmico pode abrir muitas portas em uma região pobre e subdesenvolvida. Se a ofensiva liderada pela França no norte de Mali for bem sucedida em desalojar os militantes islâmicos, parece haver muito pouca chance, no momento, de impedir estes grupos de estabelecerem novas bases no ermo deserto pouco controlado do sul da Líbia. Enquanto não houver um sistema de controle estruturado na Líbia, o interior do país continuará a apresentar ameaças à segurança de todas as nações da região”.
A vítima mais óbvia desta desestabilização até agora é o Mali. A
tomada do Mali pelos salafitas é uma consequência direta das ações da
OTAN na Líbia, o que nenhum analista sério nega.
Um dos resultados da expansão da desestabilização do Mali apoiada
pela OTAN é a Argélia – que perdeu 200.000 cidadãos em uma guerra civil
mortífera contra radicais islâmicos nos anos 90 –, que agora está
cercada por milícias salafitas fortemente armadas em suas fronteiras do
leste (Líbia) e do sul (Mali).
Em seguida à destruição da Líbia e à derrubada de Mubarak, a Argélia é
agora o único estado do norte da África ainda governado por um partido
anticolonialista que ganhou sua independência da tirania europeia.
Esse espírito independente ainda está muito em evidência nas atitudes da Argélia com relação à África e à Europa.
Na questão do Africom, a Argélia é uma grande apoiadora da União
Africana, para a qual fornece 15% do orçamento, e tem um compromisso de
US$ 16 bilhões com o estabelecimento do um Fundo Monetário Africano, o
que a torna o maior contribuinte do Fundo até o momento.
Nas suas relações com a Europa, no entanto, tem consistentemente se
recusado a desempenhar o papel de subordinada que se espera dela.
Argélia e Síria foram os únicos países da Liga Árabe que votaram
contra os bombardeios da OTAN na Líbia e na Siria e a Argélia deu
refúgio aos membros da família de Kadaffi que fugiram da matança da
OTAN.
Mas para os estrategistas europeus, mais preocupante do que tudo isso
é que a Argélia – junto com Irã e Venezuela – é o que eles chamam de
OPEC “linha dura”, decidida a brigar por seus bens naturais.
Como um artigo recente, exasperado, no Financial Times
explicou, “o nacionalismo das riquezas naturais” tomou conta e como
resultado “o Grande Petróleo azedou na Argélia, as empresas reclamam de
uma burocracia esmagadora, de medidas fiscais duras e do bullying da
Sonatrach, a empresa estatal de energia, que tem parte em quase todos os
investimentos em petróleo e gás”.
O texto continua e destaca que a Argélia implementou uma “taxa
controversa sobre herança” em 2006 e reproduz declarações de executivos
ocidentais de petróleo na Argélia dizendo que “as empresas de petróleo…
já se cansaram da Argélia”.
É instrutivo notar que o mesmo jornal acusou a Líbia de “nacionalismo
das reservas naturais” – aparentemente, o pior dos crimes para os
leitores do Financial Times – pouco menos de um ano antes da invasão da OTAN.
Claro, “nacionalismo das riquezas naturais” significa exatamente isso
– as reservas naturais de um país serem usadas primeiramente para o
benefício e desenvolvimento da própria nação (e não para empresas
estrangeiras) – e neste sentido a Argélia é culpada.
As exportações de petróleo da Argélia superam US$ 70 bilhões por ano,
e boa parte dessa receita foi investida em gastos massivos com saúde e
moradia, além de um programa de US$ 23 bilhões de empréstimo para
incentivar as pequenas empresas.
Realmente, o alto nível de investimento social é considerado o
principal motivo pelo qual uma revolta do tipo da “Primavera Árabe” não
aconteceu na Argélia nos últimos anos.
Essa tendência do “nacionalismo das riquezas naturais” também foi
citada em um artigo recente da STRATFOR, a empresa global de
inteligência, que escreveu que “a participação estrangeira na Argélia
sofreu em grande parte por causa das políticas protecionistas impostas
pelo governo militar altamente nacionalista”.
E isso era particularmente preocupante, argumentavam, enquanto a
Europa está prestes a se tornar mais dependente do gás da Argélia já que
as reservas do Mar do Norte estão acabando: “Desenvolver a Argélia como
um grande exportar de gás natural é uma estratégia econômica imperativa
para os países da União Europeia, já que a produção do Mar do Norte
entra em declínio terminal na próxima década. A Argélia já é um
importante fornecedor de energia para o continente, mas a Europa vai
precisar de mais acesso a gás natural para compensar o declínio de suas
reservas”.
As reservas do Mar do Norte da Inglaterra e da Holanda devem secar
até o fim da década e as da Noruega devem entrar em declínio agudo a
partido de 2015. Com a Europa temendo uma superdependência do gás da
Rússia e da Ásia, a Argélia – com reservas de gás natural estimadas em
4,5 trilhões de metros cúbicos, além do gás de xisto estimado em 17
trilhões de metros cúbicos – se tornará essencial, o artigo argumenta.
Mas o grande obstáculo ao controle europeu dessas reservas continua
sendo o governo da Argélia – com suas “políticas protecionistas”,
notadamente “o nacionalismo das riquezas naturais”.
Sem dizer abertamente, o artigo conclui sugerindo que um “estado
instável” e falido na Argélia seria preferível a uma Argélia sob um
governo independente estável e “protecionista”, notando-se que “o atual
envolvimento das grandes empresas de energia da União Europeia em países
de alto risco como Nigéria, Líbia, Iêmen e Iraque indica uma tolerância
saudável da instabilidade e dos problemas de segurança”.
Em outras palavras, na era da segurança particular, as Grandes do
Petróleo não requerem mais estabilidade ou a proteção do estado para
seus investimentos.
Zonas de desastre podem ser toleradas, estados fortes e independentes, não.
É, então, percebido como interesse estratégico da segurança
energética do Ocidente ver a Argélia transformada em um estado falido,
como Iraque, Afeganistão e Líbia se tornaram.
Com isso em mente, é fácil ver como a política aparentemente
contraditória de armar as milícias salafitas num minuto (na Líbia) e
bombardeá-las no minuto seguinte (no Mali) faz sentido.
A missão do bombardeio francês tem como objetivo, em suas próprias
palavras, a “conquista total” do Mali, o que na prática significa
expulsar os rebeldes rumo ao norte do país, gradualmente – em outras
palavras, direto para a Argélia.
Então, a destruição intencional do sistema de segurança do
Saara-Sahel centrado na Líbia teve vários benefícios para os que queriam
ver a África continuar limitada ao papel de provedor subdesenvolvido de
matéria prima barata.
A destruição armou, treinou e deu território às milícias inclinadas a
destruir a Argélia, o único importante país rico em matérias primas do
Norte da África comprometido genuinamente com a união e independência
africanas.
Ao fazer isso, também convenceu outros africanos de que – em
contraste com a sua rejeição unânime do Africom há pouco tempo – eles
também precisam agora pedir a “proteção” do Ocidente contra essas
milícias.
Como uma operação de proteção mafiosa típica, o Ocidente faz com que a
proteção seja “necessária” ao liberar as mesmas forças das quais as
pessoas precisam se proteger.
Agora a França ocupa o Mali, os Estados Unidos estão estabelecendo
uma nova base de aviões não-tripulados no Níger e David Cameron está
falando sobre seu compromisso com uma nova “guerra contra o terror” em
seis países, e que provavelmente levará décadas.
Porém, nem tudo vai bem no front do imperialismo. Longe disso. O
Ocidente com certeza tinha esperanças de não precisar enviar seus
próprios soldados.
O objetivo inicial era tragar a Argélia para dentro do conflito,
atraí-la para a mesma armadilha que foi usada com sucesso contra a União
Soviética nos anos 80; um exemplo anterior foi o sectarismo violento
promovido pela Grã-Bretanha e pelos Estados Unidos nas fronteiras do
inimigo para tentar arrastar seu alvo para uma guerra destrutiva.
A guerra soviética no Afeganistão em última análise não somente
fracassou, como também destruiu a economia e a moral do país no
processo, e foi o fator chave por trás da auto-destruição gratuita do
estado soviético em 1991.
A Argélia, entretanto, se recusou a cair nessa armadilha, e na rotina
do bom policial e do mau policial de Clinton e Hollande – a primeira
“pressionou por ação” na Argélia em outubro e foi seguida das tentativas
francesas de bajulação, dois meses depois – não deram em nada.
Enquanto isso, sem se prender ao script, os marionetes salafitas do
Ocidente, imprevisíveis, não se expandiram de sua base no norte do Mali
para o norte da Argélia, como era a intenção, e sim para o sul de Bamako
[capital do Mali], ameaçando derrubar um governo aliado do Ocidente que
acabara de ser instalado em um golpe há menos de um ano.
Os franceses foram forçados a intervir e expulsá-los para o norte em direção ao estado que era o alvo real desde o começo.
Por hora, esta invasão parece ter um certo grau de apoio entre os
africanos que temem os aliados salafitas do Ocidente mais que os
próprios soldados ocidentais.
Quando a ocupação começar a se arrastar, dando credibilidade aos
guerrilheiros — e ao mesmo tempo expondo a brutalidade dos invasores e
de seus aliados — veremos quanto tempo vai durar.
*Dan Glazebrook é escritor especializado em política e
jornalista. Ele escreve regularmente sobre relações internacionais e o
uso da violência por parte do estado em políticas britânicas domésticas e
internacionais.
PS do Viomundo: *Poisoned Wells é
um livro imperdível. Certamente o melhor que já se escreveu sobre a
África e o destino dos recursos naturais do continente, que alimentam o
sistema bancário-sombra do Ocidente.
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