“Joaquim Barbosa não é apenas o nosso Clarence Thomas (o ultra-conservador juiz negro estadunidense) revestido com o manto perigoso do Direito. Ele é também a metáfora do nosso impasse político e a projeção sombria do que vem por aí em termos de participação negra em um modelo de sociedade que é a nossa negação e a negação do futuro.”
A República dos brancos: Joaquim Barbosa como metáfora da distopia negra?
No momento final do julgamento do mensalão, há anos atrás, escrevi em
meu Blog que não concordava com a decisão. Não por não ver culpa e
traição nos atores da história, em especial os petistas, mas por
perceber o quanto a ardilosa elite brasileira se lambusaria no banquete
de hipocrisia que alimentaria a dinâmica política a partir dali.
E mais: o papel pedagógico do filme editado pela grande mídia – “A esquerda chega ao poder, mas acaba na cadeia”.
Mas e o papel de Joaquim Barbosa, homem negro tão festejado pelos
movimentos ao assumir o posto que hoje ocupa? A confusão conceitual e a
complexidade dos papéis sociais desses atores me fez silenciar.
Professor Jaime Amparo, agudo como de costume, nos provoca a refletir. Vale muito a pena ler!
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Por Jaime Amparo Alves*
Franz Fanon já chamava a atenção há mais de meio século para um regime de dominação racial em que a aceitação dos negros é condicionada à sua rendição aos (e reprodução dos) valores brancos.
Qual o lugar da categoria “raça” no julgamento da ação penal 470? O
que a cor da principal figura do julgamento tem a nos dizer? Ainda que a
imaginação racista branca tenha alimentado contra Joaquim Barbosa os
estereótipos tradicionais de “destemperado”, “sem-equilíbrio”,
“sem-civilidade”, ele têm gozado de uma aceitação que desafia as
análises sobre o racismo e talvez por isso explique certo silêncio da
intelectualidade negra frente ao papel do primeiro ministro negro do
Supremo Tribunal Federal como algoz do maior partido de esquerda do
país.
Entro em campo minado consciente dos custos políticos de tal
empreitada mas imagino que recusar o debate é perder a chance refletir
como a supremacia branca se reproduz no Brasil contemporâneo. Mais que
isso, o triste papel de Joaquim Barbosa nos convida a refletir sobre os
limites das atuais políticas de identidade.
Que o leitor/a não me interprete mal: ao contrário dos que acreditam
que as lutas baseadas em categorias como “raça” e “etnicidade”
reproduzem o racismo, sustento que tais categorias são não apenas
importantes e legítimas como também as únicas possibilidades para
afirmar a existência negra em um mundo estruturado a partir da dominação
racial.
Minha crítica aos limites da política de identidade negra é na
verdade em direção oposta. A questão não é negar a raça, mas sim
reafirmá-la sobre outras bases que não a da agenda da inclusão per si. É
que ela não tem sido forte o suficiente, como gostaríamos, para
construir uma consciência negra anti-sistêmica, radical, revolucionária.
Tampouco quero invisibilizar uma tradição radical negra herdada da luta
de Palmares que se mantém viva nas periferias brasileiras. Chamo a
atenção, no entanto, para uma identidade negra em formação (nos espaços
abertos pelas ações afirmativas) que possui uma inconfortável afinidade
com a sedutiva narrativa de redenção que a imagem pública de Joaquim
Barbosa projeta.
Franz Fanon já chamava a atenção há mais de meio século para um
regime de dominação racial em que a aceitação dos negros é condicionada à
sua rendição aos (e reprodução dos) valores brancos. E daí? Podemos
argumentar que não cabe aos negros transformar o mundo destruído pelos
brancos. De fato, uma das perversas equações do racismo é
responsabilizar suas vítimas. O caso de Barbosa é ilustrativo, no
entanto, das artimanhas do racismo e dos limites e possibilidades da
identidade negra coletiva. A imaginação racista à esquerda diria que
Joaquim Barbosa é um negro que se embranqueceu. A imaginação racista à
direita, mais sofisticada, tem produzido a imagem pública de um juíz
pós-raça (neutro, justo…enfim, a encarnação da Lei).
Joaquim Barbosa seria aceito porque, ao contrário de muitos de nós,
ele não é revanchista com a sociedade branca e defende os valores
republicanos. Sua escolha estratégica do dia 15 de Novembro para prender
os ícones da esquerda brasileira oferece pistas interessantes sobre a
dualidade da República (historicamente concebida como projeto plural e
ao mesmo tempo um projeto civilizatório anti-negro). Estaria Joaquim
Barbosa assumindo o papel de herói negro que refundaria a República?
Paradoxalmente, o que as práticas inquisitoriais/autocráticas de
Barbosa sugerem é a rendição negra ao papel de subalternidade na
República. Sua presença na mais alta corte do país nos convida a
refletir sobre a nossa recusa fatalista em pensar a negritude como
prática radical que pode transformar a sociedade, para além dos números
de inclusão nos espaços de poder e prestígio. Uma utopia revolucionária
negra acredita que porque negras e negros entendem como ninguém o que
significa a República, a raiva e a experiência acumulada de opressão
serão o combustível para uma negritude explosiva, radical, para além dos
discursos de redenção social tão celebrados atualmente. Em outras
palavras, uma pergunta (in)oportuna em tempos de guerra contra as ações
afirmativas seria: qual o projeto de sociedade brasileira que nós negras
e negros propomos? Que comunidade política pode a categoria raça
produzir, para além dos encontros racializados a que estão submetidos os
negros e negras?
Estas perguntas oferecem a oportunidade de refletir sobre um último
ponto: a estranha aproximação entre a suposta esquerda “autêntica” (com
figuras do movimento negro) e os partidos de direita na orgia moral
contra o Partido dos Trabalhadores. Ao invés de aproveitarmos a
oportunidade para discutir os limites e possibilidades de uma agenda
radical negra para além da representação simbólica em espaços de poder,
temos nos distraído com uma agenda do cinismo moral que não nos
pertence. Que o PSDB e seus aliados encontrem no STF a última chance de
impor um projeto de governo derrotado três vezes consecutivas nas urnas,
é tão entendível quanto desprezível. Incômodo e cruel é o triste
destino de uma certa militância negra que se recusando a pensar o
projeto revolucionário muito mais à (ou para além da) esquerda, sucumbe
ao moralismo dirigido da direita.
Como fazer uma crítica à cegueira racial da esquerda sem
reproduzirmos os discursos convenientes de que esquerda e direita são
iguais? Como não relativizar o papel trágico do PT na domesticação da
esquerda e ao mesmo tempo reconhecer nossa responsabilidade com o
projeto de país que queremos?
A indicação de Joaquim Barbosa pelo presidente Lula, depois de inúmeras reuniões de bastidores com lideranças negras, foi comemorada
como um gesto simbólico de afirmação de uma agenda até então inédita no
país: ProUni, cotas raciais, Seppir, Bolsa Família… todas resultado da
luta histórica dos movimentos negros acomodados à esquerda do espectro
político. O verdugo do PT é também resultado irônico e trágico desta
luta. Joaquim Barbosa não é apenas o nosso Clarence Thomas (o
ultra-conservador juiz negro estadunidense) revestido com o manto
perigoso do Direito. Ele é também a metáfora do nosso impasse político e
a projeção sombria do que vem por aí em termos de participação negra em
um modelo de sociedade que é a nossa negação e a negação do futuro.
*Jaime Amparo Alves, jornalista, militante da
UNEafro-Brasil e doutor em Antropologia Social, Universidade do Texas,
Austin. Atualmente é Professor Visitante da Universidad Icesi, da
Colômbia, disciplina Geografias de la Violencia.
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