Um belo artigo do Prof. Lincoln Secco que merece ler lido e discutido pelo momento em que passa o PT.
Mecanismos da guerra contra a esquerda no Brasil
Por Lincoln Secco, no Viomundo
Os recentes atos públicos contra o julgamento político a que foram
submetidos dirigentes petistas como José Dirceu e José Genoíno levaram
setores da grande imprensa a tentar pautar o Partido dos Trabalhadores e
o próprio governo Dilma, sugerindo que não lhes interessaria a defesa
de réus condenados, pois eles pertenceriam ao passado.
Todavia a esquerda, e não só a do PT felizmente tem outra avaliação. A
judicialização da política e a politização da justiça aprofundam a
repressão seletiva contra os movimentos sociais, restaurando práticas
superadas na história do Brasil. A esdrúxula interpretação que o STF
concedeu à assim chamada teoria do domínio do fato poderá e
provavelmente será usada contra o MST, o movimento estudantil, os
sindicalistas etc.
Trata-se de uma inflexão que se põe na contramão do avanço democrático conquistado pelo país desde o fim da Ditadura Militar.
Entre nós, também a democracia passou a ser vista como um valor
universal e se tornou cada dia mais difícil julgar os opositores segundo
critérios assumidamente políticos. Como também se faz mais difícil
manter políticas econômicas de gerenciamento de crises contra os
trabalhadores por governos eleitos regularmente. Na arena militar
tornou-se contraproducente defender guerras de agressão e de conquista
dirigidas por “Estados Democráticos”.
Para contornar essas dificuldades, a primeira “solução” encontrada
consiste em ver a economia como se fosse uma organização natural. Assim,
as eleições se limitariam à escolha de gestores com maior ou menor
sensibilidade social. A gestão da economia deveria ser encaminhada por
técnicos e por funcionários de bancos centrais “independentes”.
A segunda saída dentro da “democracia” levou à retomada do conceito
de guerra justa, praticada supostamente em nome de valores universais.
As guerras contra Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria e Palestina foram
“justificadas” a partir dessa doutrina.
A terceira, e que mais nos interessa no momento, consiste na
tentativa de transformar demandas sociais e políticas em questões
similares à da justiça comum. Trata-se de um retrocesso, até mesmo em
relação ao velho Presidente Washington Luiz, que explicitava o caráter
repressivo de seu governo admitindo que a questão social era caso de
polícia. Mas é também um retrocesso perante as práticas da própria
ditadura militar a qual distinguia presos políticos e comuns.
Cabe reconhecer que se trata por outro lado, de um avanço da
sofisticação das formas de dominação. Assim como a economia é
naturalizada e a guerra é “humanizada”, a ação política é limitada e
penalizada pelo ordenamento jurídico que se justifica em nome de um
suposto conteúdo “ético”.
Que o PT e o atual governo tenham se iludido acerca da
correspondência necessária dessas manifestações com a atual fase de
desenvolvimento do capitalismo não nos deve surpreender. Eles fazem
parte do sistema no qual se colocam como polo antitético interno. A
atual crise revela mais uma vez que o capital e seus governos buscam
conter a queda da taxa média de lucro através da destruição de direitos
duramente conquistados pelos trabalhadores. Claro, em nome da
racionalidade econômica, da democracia e do Direito.
Afinal, ninguém pode reclamar da taxa de juros, posto que ela é um
preço que se autodefine no mercado como qualquer outro. Ninguém deve se
insurgir contra as agressões imperialistas, já que elas são intervenções
humanitárias. E quem vai se levantar para defender “criminosos comuns”?
Que um julgamento seja um “marco histórico” justamente com dirigentes
do PT no banco dos réus; que ministros do STF, numa simbiose estranha
com os meios de comunicação tenham cobertura televisiva de celebridades;
que racistas contumazes tenham recentemente descoberto num negro um
herói de ocasião; que o cerne da tese do Procurador Geral da República
seja comprovadamente falsa; que os crimes eleitorais de alguns dos
acusados (graves em si mesmos) tenham se transformado “em maior atentado
à República”; que o Ex-Ministro José Dirceu, contra quem não se
encontrou prova alguma, seja o mais gravemente apenado de todos os
deputados julgados; tudo isso seria cômico se não fosse apenas o anúncio
de uma guerra de extermínio contra a esquerda.
A maioria do eleitorado rejeitou o uso político de escândalos e
literalmente votou contra o STF. Que juízes em nome de leis casuísticas
possam cassar mandatos populares de pessoas eleitas pelo povo é um
exercício de autoritarismo inédito em nosso país. A atual configuração
da lei eleitoral procura tutelar o eleitor, considerando-o inapto para
exercer seu democrático direito à livre escolha de seus representantes.
Parte-se do primado “iluminista” de que os eleitores estão mergulhados
nas trevas e não conhecem o passado e as ações dos candidatos. Mas, em
nome de que princípio um juiz se arvora o direito de cassar a vontade
popular?
É evidente que toda justiça corresponde à ideologia dominante, mas
ela deve repelir a violação de ritos processuais que garantem a sua
aparente neutralidade. A politização explícita da justiça cobrará o seu
preço porque a história não para. Chegará o momento de limitar o mandato
dos juízes e exigir sua escolha mediante eleições diretas. Que se
comportem como políticos é mais do que normal. Mas não que sejam
ditadores vitalícios.
Lincoln Secco é Professor de História Contemporânea na USP e autor de “A História do PT” (São Paulo, Ateliê Editorial)
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