Professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade
de Buenos Aires avalia que crítica à presidenta argentina, pautada por
veículos conservadores, não conquista população
Publicado em 15/12/2012, 10:09
Última atualização às 10:09
Atual vice-presidente, Amado Boudou, não é visto como
potencial sucessor de Cristina Kirchner, por enquanto (Foto:Pablo
Busti/RBA)
Buenos Aires – Mesmo após um ano conturbado, com considerável perda
de aprovação popular, a presidenta da Argentina, Cristina Fernández de
Kirchner, segue com uma oposição incapaz de fazer sombra ao governo. Vitoriosa em 2011 com um dos resultados mais expressivos da história democrática do país,
a titular da Casa Rosada vê do outro lado do front as mesmas figuras
que não conseguiram lhe impor dificuldades em outros momentos.
“A impossibilidade de que Cristina Kirchner tenha um novo mandato
provoca uma interrogação bastante complexa dentro das próprias filas do
peronismo e nas filas da coalizão que apoia o governo”, afirma o
analista Edgardo Mocca, professor titular da Faculdade de Ciências
Sociais da Universidade de Buenos Aires.
Em entrevista à RBA, ele avalia que a oposição fica
muito atrelada a uma agenda montada pelos grupos conservadores da mídia
argentina, em um discurso que não chega à população. São
“pré-caprilistas”, afirma, em referência a Henrique Capriles, adversário de Hugo Chávez este ano na disputa pela presidência da Venezuela,
finalmente impondo alguma dificuldade ao líder sul-americano. Com este
quatro interno, é de se esperar turbulências dentro do Partido
Justicialista, de Cristina, à medida que se aproxime a disputa
sucessória, em 2015.
A conversa foi feita na véspera do 7D, data-chave na aplicação da Lei de Meios Audiovisuais,
sancionada em 2009 e que visa a promover a diversificação dos meios de
comunicação. “Obviamente este não é um caminho de rosas, nem um futuro
simples”, avalia Mocca, que comemora a tentativa da Casa Rosada de tocar
em uma questão fundamental da democracia argentina, que é a
subordinação da política ao poder econômico.
Confira a seguir trechos da conversa.
Que avanços podemos esperar desde que se conclua este
processo da Lei de Meios, com a divisão do espectro em três pedaços
iguais?
Este é um processo que tem algum grau de execução, embora ainda falte
muito para concluir. Há um algo chave que é a presença forte de vozes
públicas não estatais, ou seja, comunitárias, sindicais, juvenis,
femininas, agrárias, dos povos originários, de universidades. Este é um
futuro que obviamente não é imediato, não é mágico, não é vertiginoso.
Mas é a criação de um horizonte para um sistema de comunicação social na
Argentina que estabeleça um poder de emissão e de produção de conteúdo
por parte de setores que até agora não estavam presentes.
Por outro lado, o fato de que se tenha um setor privado com total
competitividade e melhor manejo das licenças vai facilitar uma melhor
circulação da palavra. Há promissórios horizontes em termos de ocupação,
de permitir que todo um setor dos trabalhadores vinculado direta ou
indiretamente ao setor de comunicação tenha melhores condições. E aí não
é só uma conquista, mas também um desafio. Porque não será simples
empoderar setores sociais para que exerçam com plenitude estes direitos
que se incorporam. Há bloqueios de ordem empresarial, de iniciativa, de
organização, de capacitação no terreno da comunicação que seguramente
vai levar a um processo intenso, longo e muito exigente.
Politicamente seria um problema para o governo esperar a decisão definitiva, em vez de jogar tanta força no 7D?
Não. É evidente que a data, em grande medida pela orientação adotada
pelo governo, adquire um caráter muito forte. Mas estamos próximos de
uma decisão definitiva. Seria realmente preocupante que demorasse uma
sentença definitiva do juiz Horácio Alfonso porque estão dadas todas as
condições. É uma lei que já tem um nível de conversação, um grau de
mobilização social e uma discussão parlamentar. Estamos às vésperas de
uma decisão judicial a favor da constitucionalidade da lei. Terminou-se,
eu diria, a etapa do direito cautelar, ou seja, a ideia de que um
recurso justo e democrático, como é a liminar, possa se converter em um
circuito de sistemática obstrução da lei.
A forma como se trataram estes temas em termos de justiça cria
condições para avanço no sentido de ir colocando normas sobre as
liminares. Elas devem estar cada vez mais concentradas na garantia de
direitos individuais, e não podem dar lugar a uma indústria profissional
de obstrução deliberada de decisões do Estado.
Como o senhor analisa a argumentação do Clarín de que está havendo denegação de justiça?
É um argumento fraudulento. Esta lei foi aprovada há três anos. O
Clarín demorou nove meses, uma vez que obteve a liminar, em produzir o
passo seguinte, que é a apresentação de sua posição. Seguramente da
parte do governo também houve algumas improcedências, mas está muito
claro que o grupo Clarín tentou ganhar tempo. Se uma lei que prevê um
processo de adequação que será levado a cabo em um ano, e já se passaram
três anos apenas nos meandros do Judiciário, estamos falando
praticamente de uma legislação. Isso significa, na prática, que o
Judiciário reinterpretou uma decisão do Congresso argentino ao passar de
um para três anos o prazo estipulado para o desinvestimento.
A denegação de justiça neste caso é para a sociedade argentina porque
está retardando um prazo que a lei fixou claramente de 2009 para 2010.
Estamos nas vésperas de 2013 e ainda não se pôde executar. A denegação é
para todos os que demandamos uma comunicação democrática, não
monopólica.
Abriu-se uma frente de debate sobre a democratização do Judiciário após as decisões favoráveis ao Clarín.
Todo mundo sabe que na Justiça argentina funcionam muitas redes de
interesses com os setores mais concentrados da economia. Para olhá-lo
desde outra perspectiva, perguntaria quantos argentinos que se veem
afetados por determinada lei conseguem retardar em três anos a aplicação
da mesma. Se eu tentar alguma coisa parecida acho que será difícil.
O Grupo Clarín está dando provas, ao longo de sua história, de que
aprovou leis com nome e sobrenome. Isso, que parece tão confuso e tão
inexplicável, é simplesmente a revelação de um estado de coisas na
democracia argentina que obviamente é uma pendência. Toda a questão
judicial, que vem da ditadura, segue aí. Uma parte dos juízes postergou o
quanto pôde o julgamento dos responsáveis pelo terrorismo de Estado. De
modo que falar do Poder Judiciário argentino como uma espécie de lugar
celestial, de competência, igualdade e imparcialidade, é forçado. É
tentar mostrar um Poder Executivo avançando sobre o Poder Judiciário,
quando se trata justamente de o Executivo defender a aplicação de uma
lei votada.
O Poder Judiciário não tem funções legislativas, não pode debater as
leis. Mas abriu nos últimos meses uma instância em que parece que
estamos discutindo a lei. Mas a lei já se aprovou, já se sancionou. Há
uma pendência sobre a transparência e o Poder Judiciário na Argentina.
Isso não se resolverá por decreto. É evidente que a democracia deve ser
defendida. Tudo o que se possa fazer em matéria de legislação, de
reformas favoráveis à democracia está sempre colocado entre parênteses
se não se tem um Judiciário livre das amarras econômicas. Há quem
entenda o Judiciário como um lugar de enlace com os setores
privilegiados da sociedade.
De maneira geral, como se avalia este primeiro ano do segundo mandato?
Foi um ano bastante complexo. E que tem a ver com temas conjunturais.
A Argentina está vivendo, como todo mundo, o contexto de uma situação
crítica, que vem de muitos dos países centrais e tem grande implicação
sobre o funcionamento de nossa economia. Tivemos uma interrupção do
crescimento, dificuldades para defender a balança comercial.
E o governo sofreu uma pressão muito forte do ponto de vista
econômico-financeiro. É um país em que as manobras especulativas
produziram situações muito graves de instabilidade em muitos momentos da
história. Isso é cíclico. A Argentina se saiu até agora de forma muito
inteligente. Não sem custo porque algumas medidas que se tem de tomar em
defesa das divisas argentinas, como a retenção dos dólares, produz
insatisfação em uma parte dos assalariados, os melhores remunerados.
A outra questão problemática da agenda do governo são as dificuldades
de autosucessão. A impossibilidade de que Cristina Kirchner tenha um
novo mandato provoca uma interrogação bastante complexa dentro das
próprias filas do peronismo e nas filas da coalizão que apoia o governo.
Está colocada a incógnita de como poderia continuar-se a aplicação de
um projeto político diferente a tudo que veio antes em uma situação de
centralidade na figura da presidenta. Não havendo possibilidade de nova
reeleição, facilita-se o surgimento de dissidências internas dentro do
Justicialismo que vão dar a pauta da política imediata.
E a oposição?
Não acredito na iminência de uma força claramente opositora e
alternativa. Não há liderança, estrutura ou projeto que possa projetar
uma mudança do partido que tem o governo. A grande questão para os que
apoiam Cristina é encontrar uma fórmula sucessória que evite uma forte
disputa interna. Há gente que aceita a liderança de Cristina, mas que
não aceita que Cristina escolha seu sucessor.
O modelo Lula-Dilma não é de aplicação fácil na Argentina. Os setores
mais tradicionais do peronismo medem os tempos para uma discussão sobre
a sucessão que tem muito a ver com os tempos políticos. A candidatura
de algum governador mais independente frente à conduta de Cristina não
seria uma sucessão natural, uma mera continuidade. Seria uma
interrogação sobre o projeto político em curso.
Algumas medidas foram tomadas com claro grau de improviso, provocando
mal-estar na população, de modo que se formou um ano complicado. Não um
ano catastrófico, como pinta a direita, manipulando pesquisas. Porque
as sondagens, ainda que mostrem uma queda na aprovação popular da
presidenta, em qualquer cenário em que Cristina seja candidata segue
sendo amplamente majoritária sua votação. É um problema de erosão,
produto de um ano muito complexo, de uma dificuldade sucessória e de
falhas de gestão. Foi um ano em que houve um problema muito grave na
linha de trem urbano, foi o ano máximo da colocação em cena da Lei de
Meios, o que recrudesce o conflito. Um governo que não tivesse nenhum
ônus com tudo isso não existiria.
Quando se olha hoje para a oposição, que se manifesta
especialmente pelo Clarín, nota-se que são os mesmos que em 2011
sofreram uma imensa derrota. Por quê?
O problema de liderança é um problema de projetos, não de caras.
Então, estruturalmente há um problema aqui que a índole do governo, de
2003 para cá, é o tipo de política pública que se desenvolveu, que cria
uma dificultade para fazer uma oposição orgânica e um projeto orgânico
alternativo que não seja, de alguma maneira, uma volta ao paradigma
neoliberal. É muito difícil fazer uma oposição de esquerda a um governo
que produziu profundas mudanças na distribuição de renda, no exercício
da soberania, na integração regional.
Um projeto político não pode ser julgado por uma intenção, mas pelos
resultados concretos da política. Voltar ao imaginário neoliberal, em um
momento em que o mundo está com uma profunda interrogação sobre a
continuidade deste tipo de esquemas, que são espaços profundamente
antipolíticos e antidemocráticos porque colocam na mão da tecnocracia,
da burocracia financeira, temas centrais para a democracia.
Outro grande problema é o que chamo de matriz midiático-cêntrica da
oposição. A oposição não consegue uma matriz de desenvolvimento
político, programático, social, que não dependa do livreto elaborado
pelos grandes meios de comunicação. E este ano, depois de uma derrota,
como você disse, imensa, a verdade é que esta matriz midiático-cêntrica
estava esgotada. Mas a verdade é que estranhamente ela se mantém e se
aprofunda. Praticamente não há líder que possa criar recursos próprios.
De manhã sai um assunto na capa do La Nación ou do Clarín,
e à tarde os principais cabeças da oposição saem a interpretar esta
capa. Qual o problema? Que este discurso, dos setores oligopólicos da
comunicação, é o discurso dos setores mais recalcitrantes, é um discurso
que tem dificuldade para apelar a uma grande massa, a gente que votou
em Cristina e vê problemas, mas que entende que muitas coisas estão bem.
A oposição argentina é pré-caprilista, não aprendeu ainda a escolha
da oposição venezuelana, que construiu uma candidatura que finalmente
perdeu, mas que desafiou seriamente o governo de Hugo Chávez ao dizer
que há coisas boas, bem feitas, mas que há muitas coisas que não gostam e
que precisam ser superadas.
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