Luis Nassif
O xadrez político está interessantíssimo, principalmente depois do episódio STF-Congresso.
O Estadão não se pronunciou em editorial. A Folha condenou a atitude do Supremo. Parece que o Globo não se pronunciou.
As razões ficarão mais claras no decorrer da leitura desse artigo.
Abriu-se uma Caixa de Pandora que, provavelmente, nem mesmo os Ministros
do STF tinham previsto.
Como diz o Antonio Só nos comentários: "Tirar o saci da garrafa é fácil; quero ver botar ele de novo lá dentro..."
Primeiro passo - Esqueçam, por um instante, que essa
pro-atividade do STF (Supremo Tribunal Federal) foi insuflada pela
mídia. Interessa, agora, a análise dos desdobramentos.
Segundo passo – Separem o relevante do irrelevante na atuação dos Ministros.
Joguem no lixo da história personagens como Luiz Fux e Ayres Britto, insignificantes, pequenos oportunistas.
Fixem-se nos dois que tiveram efetivamente peso, Joaquim Barbosa e
Gilmar Mendes. O primeiro, um torquemada para ninguém botar defeito. O
segundo, um acendrado defensor dos seus que, no episódio Satiagraha,
agiu para enquadrar o juizado de primeira instância. Incluam o Marco
Aurélio de Mello, um ex-garantista que, por convicção política, abriu
mão de sua atuação pregressa.
Por motivos nobres ou menores, liberou geral.
Depois, analisem o voto de Celso de Mello, o que mais se aproxima do
perfil do magistrado tradicional, afirmando – com o rompante de quem
aguardou a vida toda por esse momento histórico – o primado da lei e a
ameaça à ordem democrática no caso de ela ser desrespeitada.
Terceiro passo –Vamos alargar a vista, sair das
paredes restritas do Supremo para o Poder Judiciário como um todo. Para o
bem ou para o mal, esse voto enquadra todos os poderes – inclusive o
próprio STF. É por aí que se entenderá a abertura da Caixa de Pandora.
O sistema judiciário é uma organização complexa, composta de várias
instituições, a primeira instância, os tribunais estaduais, os federais,
o Ministério Público etc.
É um sistema integrado por pessoas, organizadas em torno da
interpretação da Constituição e das leis. Como leis comportam várias
interpretações, o agente uniformizador é o Supremo. Proferidas suas
sentenças, firmada a jurisprudência, as conclusões irradiam-se por todo o
sistema jurídico, obrigando juízes, promotores, procuradores a se
adequarem às normas.
Mais que isso: sujeitando o STF a todo tipo de cobrança, daqui para frente, para preservar a coerência.
Vamos a um pequeno levantamento das repercussões dessa votação
Direitos humanos
O Ministério Público Federal trabalha, há anos, para condenar
torturadores. Para tanto, há a necessidade de sobrepor à Lei da Anistia
um documento juridicamente superior: as determinações da Corte
Interamericana de Direitos Humanos (http://www.corteidh.or.cr/).
Segundo o que consta no site da AGU (http://migre.me/cr0nA)
A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem competência para
conhecer de qualquer caso relativo à interpretação e aplicação das
disposições da Convenção Americana sobre Direitos humanos, desde que os
Estados-Partes no caso tenham reconhecido a sua competência. Somente a
Comissão Interamericana e os Estados Partes da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos podem submeter um caso à decisão desse Tribunal. (…)
No plano contencioso, sua competência para o julgamento de casos,
limitada aos Estados Partes da Convenção que tenham expressamente
reconhecido sua jurisdição, consiste na apreciação de questões
envolvendo denúncia de violação, por qualquer Estado Parte, de direito
protegido pela Convenção. Caso reconheça que efetivamente ocorreu a
violação à Convenção, determinará a adoção de medidas que se façam
necessárias à restauração do direito então violado, podendo condenar o
Estado, inclusive, ao pagamento de uma justa compensação à vítima.
A tendência do STF era a de não aceitar as determinações da Corte. À
luz da observância estrita das leis, o STF ousará se opor às
determinações da Corte? Não tem como. A não ser que Celso de Mello e
seus pares pretendam impor o primado da selvageria jurídica no país.
Reportagens abusivas contra saúde pública
A revista Veja solta uma matéria de capa vendendo
como emagrecedor determinado remédio para diabetes. A Anvisa (Agência
Nacional de Vigilância Sanitária) tem legislação férrea contra
publicidade de remédios, mas não agiu contra a publicidade disfarçada de
matéria. Pode alegar que existe um vácuo na lei em relação a esse
ponto.
Mas o STF ensinou que, em caso de vácuo na legislação, caberá ao
Judiciário atuar. Com base na decisão dos cinco do Supremo, procuradores
da base ganharam fôlego para atuar contra esse tipo de reportagem.
Gradativamente os abusos midiáticos contra a saúde pública terão um novo fiscal: o MPF e o Judiciário.
Outro caso: o carnaval em torno da febre amarela. Oficiou-se o MPF.
Na época, o Ministério da Saúde não apresentou estatísticas que
comprovassem o aumento de mortes devido à escandalização da febre, por
isso o processo não foi para frente. Mas, no decorrer da instrução,
todas as empresas jornalísticas tiveram que mobilizar seu jurídico para
prestar contas ao MPF. Agora, saiu um estudo de uma professora da USP
com a comprovação do aumento de mortes. Provavelmente o MPF reabrirá o
caso, agora com força redobrada graças ao horizonte que se abriu com os
votos dos cinco do Supremo.
E as empresas jornalísticas terão que reforçar seu jurídico para atender às novas cobranças.
Concessões de rádio e TV
Até hoje era questão absolutamente pacificada. O Ministério das
Comunicações nunca teve coragem de enfrentar o modelo abusivo de
concessões e o Congresso, como parte interessada, sempre avalizou a
não-ação do Ministério.
Jamais se exigiu dos concessionários provas de ilibada reputação –
lembrem-se o caso do inacreditável Ronaldo Tiradentes, dono da concessão
da CBN Manaus e que acaba de ganhar uma concessão de TV do Ministério
das Comunicações, graças a sua rede de relações políticas.
Agora, haverá condições da sociedade civil questionar diretamente o
Judiciário sobre o uso abusivo das concessões. Será mais um vácuo a ser
ocupado.
Abusos contra minorias
Nos últimos anos houve uma ação solitária do MPF contra os abusos de
emissoras contra direitos difusos da população – ataques às religiões
afro, exercício do preconceito abusivo, ridicularização de gays e
obesos, mensagens não-educativas às crianças, propaganda infantil
abusiva etc. Mas, em geral, eram barradas na Primeira Instância porque
juízes não acreditavam que o judiciário pudesse avançar em outros
campos, mais restritos ao Executivo.
Ora, o Executivo não regula, não coíbe abusos. O máximo que faz é
definir recomendações e horários. Mas, como o STF ensinou, o vácuo na
ação do Executivo precisa ser preenchido pelo Judiciário.
Ações contra políticos da oposição
Depois do mensalão, como não repetir o mesmo padrão de julgamento no
mensalão mineiro e em outras ações envolvendo parlamentares de todos os
partidos e governantes de todas as épocas?
Discutindo a nova posição
Mais do que nunca, CNJ (Conselho Nacional de Justiça), MPF, justiças
estaduais precisam seguir o exemplo da Ajufe (Associação dos Juízes
Federais) e começar a discutir da forma mais aberta possível essas
questões. Inclusive entender de maneira adequada o papel da velha mídia,
da nova mídia, a nova opinião pública.
A campanha em torno do mensalão visava atingir um poder: o Executivo.
Aberta a Caixa de Pandora, os demais dois poderes ficaram expostos ao
primado da lei. Um, o próprio STF, que será regido, de agora em diante,
pela cobrança permanente de coerência. Outro, a mídia, o segundo poder
maior do país.a
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