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segunda-feira, 30 de junho de 2025

✡☦☪🌵 Entre Abraão e o Sertão: O que une judeus, cristãos, muçulmanos e os povos da fé nordestina?

 Nas areias quentes do Oriente Médio nasceu uma das heranças mais duradouras da humanidade: a fé em um único Deus. De um homem chamado Abraão, nômade, estrangeiro, pai de filhos rivais e patriarca de povos irmãos — emergem três das maiores tradições espirituais do mundo: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo.

Mas será que essa história está tão distante assim dos nossos sertões?

A Palavra Revelada

Judeus seguem a Torá, cristãos a Bíblia, muçulmanos o Alcorão. Cada escritura é considerada

Curiosamente, aqui no sertão, há também os que escutam vozes, veem sinais, leem o mundo com os olhos da fé: os beatos, os profetas do povo, os romeiros, os poetas de cordel e os rezadores, que decifram a Bíblia com os pés no chão rachado e o coração no céu.

Se lá há profetas, cá temos Padim Ciço, Maria de Araújo, o Beato Lourenço, os penitentes, os romeiros, figuras sagradas do nosso chão árido. Se no deserto há oásis de fé, no sertão há bicas de esperança, fogueiras de promessa, terços de lágrimas e folhas de cura.


Abraão e o Povo da Cruz

Abraão, no Antigo Oriente, é o homem da travessia. Sai da sua terra, enfrenta a seca, a fome, o deserto — como o sertanejo que migra, que parte em busca de água, trabalho e um pedaço de chão. Abraão é o “pai da fé” porque acredita no invisível, como o sertanejo que planta milho na areia confiando na chuva.

Entre os filhos de Abraão, Isaque e Ismael abriram caminhos para judeus e árabes. Aqui, os filhos de Antônio Conselheiro, dos beatos e das benzedeiras também fundam reinos de fé, comunidades messiânicas, experiências de comunhão entre céu e terra.

Em Canudos, Caldeirão do Beato Zé Lourenço, Juazeiro, há a mesma mística dos desertos bíblicos: gente pobre reunida em torno de uma promessa de salvação, resistência e justiça.

Semelhanças que não se veem, mas se sentem

Essas três religiões abraâmicas compartilham valores éticos, crenças na justiça divina, no jejum, na caridade, na oração. Mas e nós, do sertão, tão impregnados de fé, somos parte de qual tradição?

Talvez de todas.

O catolicismo popular sertanejo, profundamente sincrético, bebe da fonte bíblica, mas também do sagrado africano, indígena, árabe, de antigas heranças que se misturam no corpo e na alma. Em cada Nossa Senhora das Dores, Aparecida, da Conceição ou do Rosário, vemos ecos das Marias da Bíblia, mas também da Isis egípcia, da Virgem do Alcorão (Maryam), da mãe-terra dos povos originários.

E há as benzedeiras, parteiras, rezadeiras, enraizeiras, mulheres sagradas que curam com fé, erva e palavra. Elas não aparecem no Alcorão, nem na Torá, nem na Bíblia — mas estão presentes em todas essas tradições no espírito da sabedoria feminina, da cura e do cuidado. São as "profetisas do mato", guardiãs de uma fé encarnada na vida.

Religião ou identidade?

Em Jerusalém se acotovelam igrejas, sinagogas e mesquitas. No sertão, às vezes na mesma casa há um terço, um cordão de umbanda, uma vela para Santo Antônio e uma fita de São Francisco, tudo isso ao lado de um copo d’água para o anjo da guarda. Um sagrado compartilhado, fluido, mestiço.

Será que estamos longe dos caminhos de Ismael e Isaque? Ou será que somos o terceiro filho invisível de Abraão, aquele que carrega nos ombros o barro do mundo, a cruz da pobreza e a esperança de quem nunca deixou de acreditar?

Um convite à escuta

Talvez, se os filhos de Abraão escutassem as ladainhas do sertão, os benditos de romaria, as novenas de comunidade, entenderiam melhor o que é viver sob o sol escaldante com fé no invisível. Talvez, se os povos do deserto escutassem a oração de uma benzedeira ou a prece muda de um retirante, se veriam também nela.

A fé do sertão não é menor: é universal em sua humanidade.

Talvez o Deus de Abraão, de Maomé, de Moisés, de Jesus, seja o mesmo que chora escondido nas mãos calejadas de um vaqueiro que acende uma vela pra chuva voltar, que aparece no lenço branco de uma mulher que benze com três Ave-Marias e sussurra uma palavra que alivia.

"Talvez o que nos une não seja a doutrina, mas a sede. E todos os caminhos de fé, do Oriente ao Sertão, nascem da mesma sede: de sentido, de justiça, de consolo, de esperança."

 

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