URGÊNCIA DE UM ETHOS MUNDIAL : O Ethos mundial que precisamos.
Problemas globais, soluções globais
Três problemas suscitam a urgência de uma ética mundial: a crise social, a crise do sistema de trabalho e a crise ecológica, todas de dimensões planetárias.
A crise social – os indicadores são notórios, a mudança da natureza da operação tecnológica, mediante a robotização e a informatização, propiciou uma produção fantástica de riqueza. Ela vem de forma altamente desigual, por grandes corporações transnacionais e mundiais que aprofundam ainda mais o fosso existente entre ricos e pobres. Essa acumulação é injusta, porque pessimamente distribuída. Os níveis de solidariedade entre os humanos decaíram aos tempos de barbárie mais cruel.
Tal fato suscita um fantasma aterrador: uma bifurcação possível dentro da espécie humana. Por um lado estrutura-se um tipo de humanidade opulenta, situada nos países centrais, que controla os processos científico-técnicos, econômicos e políticos e é o oásis dos países periféricos onde vivem as classes aquinhoadas.
Todos esses se beneficiam dos avanços tecnocientíficos, da bioegenética e da manipulação dos recursos naturais e vivem em seus refúgios por cerca de 120/130 anos, tempo biológico de nossas células. Por outro, a velha humanidade, vivendo sob a pressão de manter um status de consumo razoável ou simplesmente na pobreza, na marginalização e na exclusão. Esses, os deserdados e destituídos, vivem como sempre viveu a humanidade e alcançam no máximo a média de 60-70 anos de expectativa de vida.
A Crise do Sistema de Trabalho – as novas formas de produção cada vez mais automatizadas dispensam o trabalho humano; em seu lugar, entra a máquina inteligente. Com isso, destroem-se postos de trabalho e tornam-se os trabalhadores descartáveis, criando um imenso exército de excluídos em todas as sociedades mundiais.
Tal mudança na própria natureza do processo tecnológico demanda um novo padrão civilizatório. Haverá desenvolvimento sem trabalho. A grande não será o trabalho – esse no futuro será luxo de alguns -, mas o ócio. Como passar de uma sociedade de pleno emprego para uma sociedade de plena atividade que garanta a subsistência individual?
A Crise Ecológica – nas últimas décadas, temos construído o princípio da autodestruição. A atividade humana irresponsável produziu danos irreparáveis a biosfera e a condições de vida dos seres humanos na terra. Vivemos sob uma grave ameaça de desequilíbrio ecológico que poderá afetar a terra como sistema integrador de sistemas. Os climas, as águas potáveis, a química dos solos, os microorganismos, as sociedades humanas. A sustentabilidade do planeta, urdida em bilhões de anos de trabalho cósmico, poderá desfazer-se. A terra buscará novo equilíbrio que, seguramente, acarretará uma devastação fantástica de vidas. Tal princípio de autodestruição convoca urgentemente outro: o princípio de co-responsabilidade por nossa existência como espécie e como planeta.
A revolução possível em tempos de globalização
A causa principal da crise social se prende à formação como as sociedades modernas se organizam no acesso, na produção e na distribuição dos bens da natureza e da cultura. Essa forma é profundamente desigual, por que privilegia as minorias que detêm o ter, o poder e o saber sobre as grandes maiorias que vivem do trabalho; em nome de tais títulos se apropriam de maneira privada dos bens produzidos pelo empenho de todos. Os laços de solidariedade e de cooperação não são axiais, mas o são o desempenho individual e a competitividade, criadores permanentes de apartação social com milhões de marginalizados, de excluídos e de vítimas.
A raiz do alarme ecológico reside no tipo de relação que os humanos, nos últimos séculos, entretiveram com a Terra e seus recursos: uma relação de domínio, de não reconhecimento de sua alteridade e de falta de cuidado necessário e do respeito imprescindível que toda alteridade exige. O projeto de tecnociência, com as características que possui hoje, só foi possível porque, subjacente, havia a vontade de poder e de estar sobre a natureza e não junto dela e porque se destruiu a consciência de uma grande comunidade biótica, terrenal e cósmica, na qual se encontra inserido o ser humano, juntamente com os demais seres.
Esta constatação representa uma crítica ao tipo e de saber científico-técnico e à forma como lê foi apropriado dentro de um projeto de dominium mundi. Este implica a destruição da aliança de convivência harmônica entre os seres humanos e a natureza, em favor de interesses apenas utilitaristas e parcamente solidários. Não se levou em conta a subjetividade, a autonomia e a alteridade dos seres e da própria natureza.
Importa, entretanto, reconhecer que o projeto da tecnociência trouxe incontáveis comodidades para a existência humana. Levou-nos para o espaço exterior, criando a chance de sobrevivência da espécie homo sapiens/demens em caso de eventual catástrofe antropológica. Universalizou formas de melhoria de vida (na saúde, na habitação, no transporte, na comunicação, etc.) como jamais antes na história da humanidade. Hoje, entretanto, a continuação desse tipo utilitarista e anti-ecológica poderá alcançar limites intransponíveis e daí desastrosos. Para conservar o patrimônio natural e cultural acumulados, devemos mudar. Se não mudarmos de paradigma civilizatório, se não reinventarmos relações mais benevolentes e sinergéticas com a natureza e de maior colaboração entre os vários povos, culturas e religiões, dificilmente conservaremos a sustentabilidade necessária para realizar o projeto humano, aberto para o futuro e para o infinito.
Para resolver esses três problemas globais, dever-se-ia, na verdade, fazer uma revolução global. Entretanto, assim nos parece, o tempo das revoluções clássicas, havidas e conhecidas, pertence a outro tipo de história, caracterizada pelas culturas regionais e pelos estados-nações.
A saída que muitos analistas propõem é encontrar uma nova base de mudança necessária. Essa base deveria apoiar-se em algo que fosse realmente comum e global, de fácil compreensão e realmente viável. Partimos da hipótese de que essa base deve ser ética, de uma ética mínima, a partir da qual se abririam possibilidades de solução e de salvação da Terra, da humanidade e dos desempregados estruturais.
Nessa linha dever-se-à, pois, fazer um pacto ético, fundado não tanto na razão ilustrada, mas no pathos, vale dizer, na sensibilidade humanitária e inteligência emocional expressas pelo cuidado, pela responsabilidade social e ecológica, pela solidariedade generacional e pela compaixão, atitudes essas capazes de comover as pessoas e movê-las para uma nova prática histórico-social libertadora. Urge uma revolução ética mundial.
Tal revolução ética deve ser concretizada dentro da nova situação em que se encontram a Terra e a humanidade: o processo de globalização que configura um novo patamar de realização história e do próprio planeta. Nesse quadro, deve emergir a nova sensibilidade e o novo ethos, uma revolução possível nos tempos da globalização.
Por ethos, entendemos o conjunto das inspirações, dos valores e dos princípios que orientarão as relações humanas para com a natureza, para com a sociedade, para com as alteridades, para consigo mesmo e para com o sentido transcendente da existência: Deus. Esse ethos nasce de uma nova ótica e toda nova ótica irrompe a partir de um mergulho profundo na experiência do Ser, de uma nova percepção do todo ligado, re-ligado em suas partes e conectado com a Fonte originária donde promanam todos os entes.
Leonardo Boff
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