16/11/2013 – Copyleft - Viomundo
A segunda tortura de José Genoíno
Genoíno foi torturado na ditadura e seus torturadores seguem impunes,
abrigados por decisões deste mesmo tribunal que condena sem provas
militantes do PT.
Ernst Bloch, na sua crítica aos princípios do Direito Natural sem
fundamentação histórica, defendeu que não é sustentável que o homem seja
considerado, por nascimento, “livre e igual”, pois não há “direitos
inatos, e sim que todos são adquiridos em luta”.
Esta categorização, “direitos adquiridos em luta”, é fundamental
para compreender as ordens políticas vigentes como Estado de Direito,
que proclamam um elenco de princípios contraditórios, que ora expressam
com maior vigor as conquistas dos que se consideram oprimidos e
explorados no sistema de poder que está sendo impugnado, ora expressam
resistências dos privilegiados, que fruem o poder real: os donos do
dinheiro e do poder.
Esta dupla possibilidade de uma ordem política, inscrita em todas as
constituições, mais ou menos democráticas, às vezes revela-se mais
intensamente no contencioso político, às vezes ela bate à porta dos
Tribunais.
A disputa sobre o modelo de desenvolvimento do país, por exemplo,
embora em alguns momentos tenha sido judicializada, deu-se até agora,
predominantemente, pela via política, na qual o PT e seus aliados de
esquerda e do centro político foram vitoriosos, embora com alianças
pragmáticas e por vezes tortuosas para ter governabilidade.
Já a disputa sobre a interpretação das normas jurídicas que regem a
anistia em nosso país e a disputa sobre as heranças dos dois governos do
presidente Lula tem sido, predominantemente, judicializadas.
São levadas, portanto, para uma instância na qual a direita política,
os privilegiados, os conservadores em geral (que tentaram sempre
fulminar o Prouni, o Bolsa Família, as políticas de valorização do
salário mínimo, as políticas de discriminação positiva, e outras
políticas progressistas), tem maior possibilidade de influenciar.
Quando falo aqui em “influência” não estou me referindo a incidência
que as forças conservadoras ou reacionárias podem ter sobre a
integridade moral do Poder Judiciário ou mesmo sobre a sua honestidade
intelectual.
Refiro-me ao flanco em que aquelas forças — em determinados assuntos
ou em determinadas circunstâncias – podem exercer com maior sucesso a
sua hegemonia, sem desconstituir a ordem jurídica formal, mantendo
mínimos padrões de legitimidade.
O chamado processo do “mensalão” obedeceu minimamente aos ritos
formais do Estado de Direito, com atropelos passíveis de serem cometidos
sem maiores danos à defesa, para chegar a final previamente
determinado, exigido pela grande mídia, contingenciado por ela e
expressando plenamente o que as forças mais elitistas e conservadoras do
país pretendiam do processo: derrotados na política, hoje com três
mandatos progressistas nas costas, levaram a disputa ao Poder Judiciário
para uma gloriosa “revanche”: ali, a direita derrotada poderia fundir
(e fundiu) uma ilusória vitória através do Direito, para tentar
preparar-se para uma vitória no terreno da política.
As prisões de Genoíno e José Dirceu foram celebradas freneticamente pela grande imprensa.
Sustento que os vícios formais do processo, que foram corretamente
apontados pelos advogados de defesa – falo dos réus José Genoíno e
José Dirceu — foram totalmente secundários para as suas condenações.
Estas, já estavam deliberadas antes de qualquer prova, pela grande
mídia e pelas forças conservadoras e reacionárias que lhe são
tributárias, cuja pressão sobre a Suprema Corte — com o acolhimento
ideológico de alguns dos Juízes – tornou-se insuportável para a ampla
maioria deles.
Lembro: antes que fossem produzidas quaisquer provas os réus já eram
tratados diuturnamente como “quadrilheiros”, “mensaleiros”,
“delinquentes”, não somente pela maioria da grande imprensa, mas também
por ilustres figuras originárias dos partidos derrotados nas eleições
presidenciais e pela banda de música do esquerdismo, rapidamente aliada
conjuntural da pior direita nos ataques aos Governos Lula.
Formou-se assim uma santa aliança, antes do processo, para produzir
a convicção pública que só as condenações resgatariam a “dignidade da
República”, tal qual ela é entendida pelos padrões midiáticos
dominantes.
Em casos como este, no qual a grande mídia tritura indivíduos, coopta
consciências e define comportamentos, mais além de meras convicções
jurídicas e morais, não está em jogo ser corajoso ou não, honesto ou
não, democrata ou não.
Está em questão a própria funcionalidade do Estado de Direito, que
sem desestruturar a ordem jurídica formal pode flexioná-la para dar
guarida a interesses políticos estratégicos opostos aos que “adquirem
direitos em luta”.
Embora estes direitos sejam conquistas que não abalam os padrões de
dominação do capital financeiro, que tutela impiedosamente as ordens
democráticas modernas, sempre é bom avisar que tudo tem limites.
O aviso está dado. Mas ele surtirá efeitos terminativos?
Este realismo político do Supremo ao condenar sem provas, num
processo que foi legalmente instituído e acompanhado por todo o povo —
cercado por um poder midiático que tornou irrelevantes as fundamentações
dos Juízes — tem um preço: ao escolher que este seria o melhor
desfecho não encerrou o episódio.
Ficam pairando, isto sim, sobre a República e sobre o próprio
prestígio da Suprema Corte, algumas comparações de profundo significado
histórico, que irão influir de maneira decisiva em nosso futuro
democrático.
José Genoíno foi brutalmente torturado na época da ditadura e seus
torturadores continuam aí, sorridentes, impunes e desafiantes, sem
qualquer ameaça real de responderem, na democracia, pelo que fizeram nos
porões do regime de arbítrio, abrigados até agora por decisões deste
mesmo Tribunal que condena sem provas militantes do PT.
José Dirceu coordenou a vitória legítima de Lula, para o seu primeiro
mandato e as suas “contrapartes”, que compraram votos para reeleger
Fernando Henrique (suponho que sem a ciência do Presidente de então),
estão também por aí, livres e gaudérios.
O desfecho atual, portanto, não encerra o processo do “mensalão”, mas
reabre-o em outro plano: o da questão democrática no país, na qual a
“flexão” do Poder Judiciário mostra-se unilateralmente politizada para
“revanchear” os derrotados na política.
Acentua, também, o debate sobre o poder das mídias sobre as instituições.
Até onde pode ir, na democracia, esta arrogância que parece infinita
de julgar por antecipação, exigir condenações sem provas e tutelar a
instituições através do controle e da manipulação da informação?
Militei ao lado de José Genoíno por mais de vinte anos, depois nos
separamos por razões políticas e ideológicas, internamente ao Partido. É
um homem honesto, de vida modesta e honrada, que sempre lutou por seus
ideais com dignidade e ardor, arriscando a própria vida, em momentos
muito duros da nossa História.
Só foi condenado porque era presidente do PT, no momento do chamado “mensalão”.
Militei sempre em campos opostos a José Dirceu em nosso Partido e, em
termos pessoais, conheço-o muito pouco, mas não hesito em dizer que foi
condenado sem provas, por razões eminentemente políticas, como
reconhecem insuspeitos juristas, que sequer tem simpatias por ele ou
pelo PT.
Assim como temos que colocar na nossa bagagem de experiências os
erros cometidos que permitiram a criação de um processo judicial
ordinário, que se tornou rapidamente um processo político, devemos
tratar, ora em diante, este processo judicial de sentenças tipicamente
políticas, como uma experiência decisiva para requalificar, não somente
as nossas instituições democráticas duramente conquistadas na Carta de
88, mas também para organizar uma sistema de alianças que dê um mínimo
respaldo, social e parlamentar, para fazermos o dever de casa da
revolução democrática: uma Constituinte, no mínimo para uma profunda
reforma política, num país em que a mídia de direita é mais forte do que
os partidos e as instituições republicanas.
(*) Governador do Rio Grande do Sul
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