🌵 Por Olhos do Sertão
A guerra nunca é apenas um conflito de balas. Ela é também uma disputa de narrativas, de identidades, de pertencimentos. No centro do atual conflito entre Israel e Palestina, vemos emergir com força um velho conceito, por vezes mal compreendido: o de “semita”. Mas, afinal, quem são os semitas? E quem, hoje, está sendo realmente atacado quando o mundo fala em antissemitismo?
O que significa ser semita?
O termo semita não define uma etnia, tampouco uma raça. Ele se refere, originariamente, a um grupo linguístico. São povos que falam ou falavam línguas semíticas, como o hebraico, o árabe, o aramaico, o amárico, entre outras. Nesse sentido, tanto judeus quanto árabes palestinos são semitas.
Reduzir o termo “antissemitismo” apenas ao ódio contra judeus, portanto, é um erro histórico e político. Atitudes antipalestinas que negam a existência, os direitos ou a dignidade desse povo , também podem ser entendidas como formas de antissemitismo, embora isso raramente seja reconhecido nos grandes fóruns internacionais.
Israel: uma colcha de retalhos étnico-religiosa
Muitos dos judeus que vivem hoje em Israel são descendentes de imigrantes europeus, os chamados ashkenazi, vindos de países como Alemanha, Polônia, Hungria, Rússia. Porém, Israel também abriga judeus mizrahim e sefaraditas, oriundos do mundo árabe-islâmico: Marrocos, Iraque, Iêmen, Irã, Egito. Esses judeus, de pele mais escura e costumes próximos aos árabes, nem sempre foram bem recebidos no projeto sionista original, profundamente eurocentrado.
A questão é: pode-se falar, então, de um “povo judeu” único, com raízes étnicas homogêneas e direito exclusivo sobre a Terra Santa?
Uma história em disputa: Shlomo Sand e o mito do povo judeu
O historiador israelense Shlomo Sand, em seu livro A Invenção do Povo Judeu, coloca em xeque essa narrativa dominante. Para ele, o conceito de “povo judeu” como uma nação com base étnica e racial é uma construção moderna, moldada nos paradigmas nacionalistas europeus do século XIX.
Segundo Sand:
Os judeus sempre formaram comunidades religiosas diversas, multiculturais, espalhadas pelo mundo.
Houve conversões em massa ao judaísmo (como no caso dos cazares).
A “diáspora” forçada pelos romanos é mais mito que fato — muitos judeus permaneceram na Palestina, outros migraram por razões diversas.
Muitos palestinos atuais provavelmente descendem de hebreus que se converteram ao cristianismo e depois ao islamismo ao longo dos séculos.
Ou seja, os muros identitários entre judeus e palestinos são mais frágeis e entrelaçados do que se costuma admitir. Eles compartilham uma história comum, que foi artificialmente separada por projetos políticos de exclusão.
Antissemitismo: instrumento de crítica ou silenciamento?
Criticar a política de um governo não é ódio racial. E há muitos judeus — dentro e fora de Israel — que se posicionam contra a ocupação da Palestina, contra os bombardeios em Gaza, contra a segregação de cidadãos árabes. Ainda assim, tais críticas são, com frequência, acusadas de antissemitismo.
O uso indevido do termo serve, muitas vezes, como escudo ideológico para evitar a responsabilização de Israel por violações do direito internacional. Mas não se pode esquecer que:
Há discursos antijudaicos reais, que devem ser combatidos.
Mas também há silenciamentos indevidos de vozes críticas legítimas.
A ética exige equilíbrio: condenar os crimes, não os povos. Exigir justiça, não vingança.
Para além da identidade: a urgência de um novo horizonte político
A proposta de Shlomo Sand é radical na melhor acepção da palavra: ir à raiz. Ele propõe que Israel deixe de se entender como “Estado judeu” e passe a se construir como um Estado de todos os seus cidadãos — judeus, palestinos, cristãos, drusos, beduínos.
Isso significaria:
Fim da cidadania de segunda classe para árabes palestinos.
Superação do apartheid político, econômico e territorial.
Reconhecimento da Nakba como parte da memória coletiva da região.
Não se trata de apagar o direito à memória judaica — marcada por séculos de perseguições e pelo horror do Holocausto —, mas de somar a essa dor a memória palestina, que também sangra há décadas sob ocupações, cercos, bombardeios e expulsões.
Conclusão: entre o mar e o sertão, entre a guerra e a paz
Talvez
a frase mais enigmática e simbólica de Guimarães Rosa sirva aqui
como metáfora da paz possível:
"Que o sertão continue
virando mar — e o mar, virando sertão."
Que o
endurecido coração das nações encontre caminhos de ternura. Que o
impossível se revele real. Que o mar da guerra seque, e o sertão da
esperança floresça.
Como
disse Edward Said, intelectual palestino exilado:
"A paz
requer mais imaginação do que a guerra."
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