Autor(es): Frei Betto
Correio Braziliense - 11/11/2011
Escritor, autor, em parceria com Marcelo Gleiser e Waldemar Falcão, de Conversa sobre a fé e a ciência (Agir), entre outros livros
Lula é, hoje, a voz do Brasil. De modo especial, a voz dos que não têm voz. Nenhum brasileiro tem, no exterior, tanta audiência. Os chefes de Estado prestam atenção no que ele diz, inclusive Dilma Rousseff.
Universidades dos cinco continentes o homenageiam com o diploma de doutor honoris causa. Empresários, dentro e fora do Brasil, querem conhecer seu ponto de vista sobre a conjuntura. Organismos internacionais se interessam pelo modo como o seu governo combateu a fome e reduziu a desigualdade social no Brasil.
A vida é imprevisível. Frágil como uma folha seca. E o futuro a Deus pertence. Súbito, Lula vê-se afetado por um câncer na laringe. Até parece que a natureza decidiu atingi-lo em seu calcanhar de aquiles. Como ocorreu ao pianista João Carlos Martins, cujos dedos das mãos, afetados por uma sucessão de problemas de saúde, quase o obrigaram a se afastar da música. Hoje, ele é reconhecidamente um exímio regente.
O câncer parece perseguir os chefes de Estado: Lugo, Chávez, José Alencar... Lula é feito da mesma matéria-prima de Alencar. Os dois foram dotados de um imbatível otimismo frente à vida, sustentado por consistente fé cristã. Como Alencar, Lula se sabe predestinado — não no sentido messiânico que o termo possa sugerir, e sim como resultado de uma convergência de fatores que o levaram à vida pública — e, graças à sensibilidade social trazida de berço, se empenha em minorar a desigualdade social e a promover uma ampla política de inclusão dos empobrecidos.
Todo o poder de comunicação de Lula se centra na voz. Ele nasceu brindado pelo dom da oratória. Lembro-me do início de nossa amizade, nas grandes assembleias metalúrgicas do ABC, no estádio da Vila Euclides, nos primeiros anos da década de 1980. Lula, antes de sair de casa, elencava num pedaço de papel os temas a serem abordados em seu discurso de encerramento da concentração operária. Era sempre o último a falar. Seu discurso marcava a culminância da assembleia.
Ocupado o palanque, iniciava-se a sucessão de pronunciamentos: diretores do Sindicato dos Metalúrgicos, líderes operários, advogados trabalhistas, políticos... À medida que o ato avançava, os pontos elencados por Lula brotavam da boca dos oradores que o precediam. Eu me sentia aflito por ele, preocupado se, ali no palanque, ele teria ideia de outros temas que ninguém tivesse abordado.
Terminada a lista de oradores, a palavra de coroamento da manifestação cabia a Lula. Todos prestavam silenciosa atenção, como se cada uma de suas frases devesse ser absorvida pela multidão. Então, Lula surpreendia. Não por arrancar da cartola retórica, como um mágico, temas inéditos. A pauta era a mesma. A novidade consistia no modo como a abordava.
Não falava com a cabeça, e sim com o coração. Não proferia teorias nem se perdia na ênfase de frases demagógicas. Discursava a partir de experiências oriundas de sua trajetória pessoal, criava parábolas, contava "causos". Exortava, advertia, expressava metáforas bem-humoradas, destilava ironias em torno da ditadura, caricaturava ministros e empresários, cobrava de cada grevista empenho na mobilização, atiçava os brios éticos da massa trabalhadora. Seu pronunciamento soava mais moral do que político. Sua voz inflamava a assembleia.
Agora, a voz padece. Descansa. Exige cuidados. Lula, como ocorre às águias ao atingirem 40 anos de idade, se recolhe à montanha para adquirir novo vigor. E, em breve, retomar seu voo por uma política, no Brasil e no mundo, centrada no fim da miséria e da pobreza — onde a sua vida teve início.
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