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domingo, 2 de janeiro de 2011

Adeus nas asas da emoção

Logo depois de descer a rampa do Planalto de braços dados com dona Marisa e Dilma, Lula quebra o protocolo e vai para os braços da multidão

Nas últimas 24 horas antes de voltar à planície, o agora ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se despediu do cargo reproduzindo boa parte das cenas que se tornaram rotina em oito anos de mandato. Ganhou muitos presentes de assessores próximos, entre eles várias camisetas do Corinthians. Entrou no Planalto para descer a rampa em direção a Dilma Rousseff saudado pelo antigo grito de campanha "Olê, olê, olê, olá, Lula, Lula". Ao se despedir da presidente eleita, quebrou, pela última vez, o protocolo oficial e deixou a segurança pessoal em pânico ao ir abraçar populares. Chorou - como sempre. Foi escoltado pelo presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), até o desembarque em São Paulo. Por fim, visitou o vice José Alencar e chegou a São Bernardo do Campo, mesmo lugar de onde saiu, em 2003, para assumir o endereço mais conhecido do país.

Na despedida de assessores e servidores da Esplanada, na sexta-feira, Lula ainda tateava para se desvincular da Presidência. Relembrou a todos a trajetória política: "Em 1982, quando disputei o governo de São Paulo e perdi, fiquei muito triste. Triste mesmo. Falei com a Marisa. Depois, pensei: em que lugar no mundo um operário tem 1 milhão 250 mil votos? Eu percebi que já era um vitorioso". Durante os dois mandatos, ganhou cerca de 1,6 mil presentes. Alguns, simbólicos, como um minipúlpito, dado pela equipe de imprensa para que ele se lembrasse dos profissionais; um cinto de segurança e uma caixa de remédios, de funcionários dos ministérios dos Transportes e da Saúde.

Os funcionários transformaram o Planalto quase em um comitê petista, usando lenços com estrelas do PT adornando a cabeça e o pescoço, com os dizeres "Valeu, Lula" e "Bem-vinda, Dilma". Na despedida dos assessores mais próximos, chorou muito. Agradeceu o empenho e a colaboração de cada um no seu governo. Emocionou-se ao receber a homenagem de uma das secretárias, que também mal conseguia falar de tanta emoção. "Foi um presidente que tratava todo mundo igual e se preocupava com todos", dizia. Para alguns, é mesmo o fim de uma era. "É bom aproveitar, porque a partir de amanhã (hoje) ninguém mais pode subir ao terceiro andar", brincou um funcionário da limpeza, que passou 35 minutos esperando para tirar uma foto com Lula. Conseguiu.

Ano-novo

Depois da sessão de despedida, Lula ainda ficou cerca de duas horas na festa de ano-novo preparada por Dilma na Granja do Torto e voltou ao palácio por volta da 1h. No dia em que deixaria de ser presidente, acordou às 9h. Brincou com os netos até quase 15h. Mais uma hora e já estava no Planalto, faixa sobre o ombro, ao lado da mulher, Marisa Letícia. No momento em que a sucessora se aproximava da rampa do Palácio, passou pelos convidados para a cerimônia, que incluíam praticamente todos os ex-ministros que passaram pela Esplanada nos últimos oito anos. Ao descer a rampa pela última vez, de braços dados com Marisa e Dilma, foi acompanhado por todos. Quando avistou a multidão, não se conteve. Chorou, abraçou e cumprimentou, de olhos marejados, quem se espremia na grade de proteção. "O general Félix (responsável pela segurança do presidente e nas redondezas do Palácio) conhece o Lula e tinha certeza de que ele não perderia a oportunidade de quebrar o protocolo mais uma vez. Preparou tudo, inclusive várias áreas de escape para a segurança agir", disse, entre risos, um assessor direto do agora ex-presidente.

No trajeto entre o Eixo Monumental e a Base Aérea, foi escoltado por vans com vários auxiliares. Cerca de 20 assessores vestiam uma camiseta com a frase "Valeu, Lula". Uma banda da Aeronáutica tocou Amigos para sempre e o hino do Corinthians. Ao subir no avião presidencial para a última viagem, despediu-se do comandante e da tripulação. Teve a companhia de Marisa, do filho Lulinha, e de José Sarney - o presidente do Senado pretendia deixar o ex-presidente na porta de casa, em São Bernardo.

Antes de voltar à planície, no entanto, Lula ainda visitou José Alencar, que está internado no Hospital Sírio Libanês, em tratamento contra um câncer que o atormenta há mais de uma década. O vice tinha, até os últimos momentos, a esperança de descer a rampa ao lado de Lula, ainda que numa cadeira de rodas. Acabou proibido pelos médicos. Ao sair do Sírio, o metalúrgico, que deixa o governo aprovado por 87% da população brasileira, participou de uma festa em sua homenagem em São Bernardo. Dentro de casa, além das lembranças dos oito anos no Palácio do Planalto, deixará um espaço reservado para três presentes. Um capacete de Ayrton Senna, doado pela irmã do piloto, Viviane; um vaso de cristal verde, presenteado pela rainha Sílvia, da Suécia; e, por um último, sempre ela, uma camiseta do Corinthians. O presidente-operário, o presidente-torcedor agora vai para a arquibancada.

Onze caminhões

Uma prova da popularidade de Lula ao deixar a presidência pode ser medida pelos presentes que o agora ex-presidente transportará para um depósito pessoal alugado em São Bernardo do Campo. Serão necessários onze caminhões para acomodar tudo o que ele ganhou de populares e autoridades nacionais e estrangeiras. Entre os presentes mais inusitados recebidos por Lula desde 2003, há centenas de potes de sebo de carneiro para curar a bursite que o incomodou nos primeiros meses de mandato. Para a sucessora, ele ainda deixou como herança um pé de mandacaru, plantado nos jardins do Palácio do Planalto. Só de cartas, foram 8 mil, cerca de 200 por dia, todas respondidas e que serão entregues a Lula. Toda essa mudança está marcada para a semana que vem.

Gravata emoldurada

Ao voltar para a planície, Lula também precisará encontrar um destino para o vestuário característico de presidente da República, utilizado por ele em oito anos. São 150 ternos Ricardo Almeida e 2 mil camisas e gravatas. De todo esse material, apenas um tem destino certo. Uma gravata com as cores da bandeira do Brasil aguarda o momento de ser emoldurada no apartamento de São Bernardo do Campo. O que faz dela tão especial é exatamente o momento em que foi utilizada: o dia em que o Rio de Janeiro foi escolhido sede das Olimpíadas de 2016.

Em outras posses, tensão e nervosismo

Lúcio Vaz

Em 1990, José Sarney se despede do poder obtido por acaso e passa a faixa a Fernando Collor, que passara a campanha atacando o então presidente; em 1995, FHC assume o Planalto

Presença de 130 mil pessoas na Esplanada dos Ministérios, seguidas quebras do protocolo e cenas de fanatismo marcaram a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva há oito anos. Bem diferente do clima formal da posse de Dilma Roussef. Ele contou até com a ajuda de São Pedro no momento do desfile em carro aberto. A chuva que caía havia dias parou minutos antes. No trajeto, o militante Pedro Ângelo Lima, vestido de vermelho, driblou o forte esquema de segurança e agarrou-se ao braço do presidente, que foi quase arrancado de dentro do Rolls-Royce preto. Lula e Fernando Henrique Cardoso se atrapalharam durante a entrega da faixa presidencial. Os óculos do tucano caíram no chão.

No Palácio do Planalto, os convidados esperaram o presidente num verdadeiro corredor polonês. "Eles não quebraram o protocolo, demoliram", conformou-se um funcionário do cerimonial. No Congresso, a tietagem dos parlamentares era visível. Alguns levaram bandeiras do Brasil e do PT. A senadora Heloísa Helena (PT-AL), que anos mais tarde trocaria o partido pelo PSol, vestia vermelho da cabeça aos pés. O ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, manteve a barba, imitando Lula. Na saída, o velho Rolls-Royce apagou e teve que ser empurrado por seguranças.

A segunda posse de Lula, na reeleição, foi bem menos concorrida. Ele discursou para um Congresso com muitas cadeiras vazias. Dos 1,3 mil convidados, apareceram apenas 400. Só 210 parlamentares estavam presentes. Apenas nove dos 17 governadores eleitos estiveram no Palácio do Planalto. Mas Lula não perdeu o hábito de quebrar protocolos. Encerrada a cerimônia no Parlatório, desceu a rampa e foi abraçar os militantes que estavam na Praça dos Três Poderes, como fez ontem, na despedida do cargo.

Tensão

Em clima tenso devido a vários alertas da Interpol sobre a possibilidade de atentados terroristas, a posse de FHC, em 1995, foi absolutamente formal e contida. O mau tempo e a posse simultânea de 27 governadores impediram uma presença maior do público. O presidente sofreu com dores nas costas durante as duas horas e meia de solenidades. Mas ele também desfilou em carro aberto. E quase caiu no banco da frente do carro num momento de distração.

Em dia de sol forte, cerca de 20 mil pessoas assistiram ao desfile de Fernando Collor em carro aberto na sua posse, em março de 1990. Apesar de estar num território onde Lula teve a maioria dos votos, o presidente não foi constrangido em momento algum. Esteve sempre sorridente e repetiu seguidas vezes o "V" da vitória com os dedos, uma marca da sua campanha. Vaias apenas quando o ex-presidente José Sarney desceu a rampa para última vez. No Congresso, Collor atravessou salões e o plenário a passos largos, deixando o vice Itamar Franco para trás. Dois anos depois, sairia escorraçado do Planalto.

A posse de José Sarney, em março de 1985, ocorreu em clima de frustração e nervosismo. O povo esperava pela posse de Trancredo Neves, que estava no hospital e jamais assumiria o poder. Sarney era o presidente em exercício. O seu primeiro contato com o povo foi tumultuado, já que o cordão de segurança foi rompido, em frente ao Congresso. Parte do povo gritava "Tancredo, Tancredo, Sarney, Sarney. Viva a Nova República". O poder estava dividido.
do Correio

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