CLAUDIA ANTUNES
ENVIADA A BRASÍLIA
Os responsáveis pela política externa do governo Dilma ainda tateiam para pôr em prática a orientação da presidente de dar prioridade aos direitos humanos sem agir de modo seletivo, revela entrevista à Folha de Marco Aurélio Garcia, assessor internacional do Planalto.
O Brasil vai "trabalhar melhor as coisas" nesse tema, mas não será um um "alto-falante giratório que vai denunciar todas as violações" nem um "tribunal de opiniões" sobre países árabes e africanos.
Alan Marques25set.07/Folha Imagem |
Marco Aurélio Garcia permaneceu como assessor especial para Assuntos Internacionais no governo Dilma |
Na entrevista, ele deixou claro que o Brasil apoia uma solução para o impasse pós-eleitoral no Haiti baseada no relatório da OEA (Organização dos Estados Americanos) --que recomenda um segundo turno da eleição presidencial sem o candidato governista--, embora discorde da pressão pública nesse sentido feita por França e EUA.
Disse que a política dos EUA para a América do Sul precisa ser menos "ideológica" e que não acredita em neocolonialismo chinês na região. "Não vem ninguém aqui nos dizer como é que tem que ser nossa política macroeconômica."
Ele defendeu o venezuelano Hugo Chávez de críticas do secretário-geral da OEA, confirmou a tratativa para a Colômbia entrar no Mercosul e disse que o projeto brasileiro é que a América do Sul "seja um polo deste novo mundo multipolar".
No Planalto desde 2003, Garcia está aumentando a assessoria internacional da Presidência de cinco para sete pessoas, para ir além das demandas do dia a dia e ter uma "sofisticação maior na reflexão" estratégica sobre a situação internacional.
Abaixo, os principais trechos da entrevista.
FOLHA - Neste início do governo Dilma, com a catástrofe que houve no Rio, questões de câmbio, inflação, a agenda internacional tende a ter uma redução?
MARCO AURÉLIO GARCIA - Não tem tido, até porque há muitas chamadas de chefes de Estado e de governo. Este é o momento para descortinar um pouco o que vai ser a agenda do ano. Temos alguns compromissos como a reunião dos países árabes com a América do Sul [em fevereiro]. Ela também quer dar logo uma sinalização da prioridade que damos à América do Sul, visitando se possível todos os países da região.
Pelo contato com os visitantes na posse, já deu para perceber o que será o estilo Dilma de diplomacia presidencial?
Já, acho que será, à sua maneira, um estilo muito ativo de diplomacia presidencial. Ela tem um interesse muito grande pelos temas internacionais, já tinha antes mesmo de ser chefe da Casa Civil. A Dilma tem uma gigantesca curiosidade intelectual.
Me refiro também à maneira como ela parecia à vontade abraçando, segurando a mão das autoridades internacionais. Ela é assim mesmo?
Acho que a imprensa está entrando numa via um pouco complicada de ver as diferenças entre Dilma e Lula. A própria presença do Lula na política externa passou por mudanças. As mudanças que ocorrem e que ocorrerão com a Dilma vão estar relacionadas a duas coisas. A primeira são as mudanças na situação internacional, e a política externa, por mais estratégica que queiramos que seja, sempre é reativa, ela é surpreendida pelo avião nas torres, a queda do Muro de Berlim. A segunda é a percepção concreta que a presidenta terá.
A situação pós-eleitoral do Haiti é preocupante. Há uma pressão muito grande dos EUA e França para o presidente René Préval aceitar o relatório da OEA (Organização dos Estados Americanos). Há questionamentos do relatório, que alegam que ele usou uma amostra muito pequena para determinar que o terceiro colocado passaria ao segundo lugar. Qual é a posição brasileira?
A França e os EUA podem fazer muitas declarações, mas quem está no Haiti somos nós. A Minustah [força de paz da ONU] tem contribuído para que a situação não se deteriore ainda mais. Imagino que com outro tipo de presença militar a coisa já teria ido para o vinagre há muito tempo.
Quanto à eleição, temos que entender o seguinte: essas coisas têm que ser muito acordadas, tem que ser tudo muito bem feito. Temos tido sorte de ter tido bons embaixadores lá, e o atual embaixador [Igor Kipman] tem conversado muito com o governo e ponderado a necessidade de chegarmos a uma solução.
Essa solução, até o momento, pelo que sabemos, passaria pela aceitação do relatório. Agora esse relatório não pode se entendido como uma coisa imposta. Não é porque a OEA produziu o relatório que isso vai se transformar em lei. O Haiti tem instituições, e a primeira delas é o Conselho Eleitoral. Temos que pensar tudo isso com base no respeito à soberania nacional, porque senão incorreremos em erro jurídico- diplomático e estaremos criando uma situação de instabilidade no país.
O Brasil não compartilha das reservas em relação ao conteúdo do relatório?
As informações que temos tido são de que o relatório é um retrato bastante aproximado [da votação]. Não é evidentemente um retrato completo, e dificilmente poderia sê-lo, porque foi feito por amostragem, e toda a amostragem tem essa característica. Achamos de qualquer maneira que isso passa pela avaliação do Conselho. Se o Conselho considerar que o relatório é procedente, ele é a instância.
E se não considerar?
Se não considerar aí se cria um impasse, mas os diplomatas existem para tentar resolver esse problema junto com o governo haitiano.
O Brasil compartilha da ideia que a melhor solução seria eles aceitarem o relatório?
A melhor solução não sei. Claro que se eles aceitarem é uma boa solução, porque significaria que nós teríamos um segundo turno no mês de março. Confesso que tenho que me fiar na avaliação da nossa embaixada, que está fazendo um trabalho de enorme qualidade, muita discrição e pouca declaração pública.
Logrou-se no Haiti uma certa estabilidade, que no entanto não pode ocultar a questão essencial, de que as grandes potências não cumpriram com suas responsabilidades de injetar o dinheiro necessário. Usa-se o argumento de que não há Estado, mas não existe Estado sem financiamento, e nesse círculo vicioso o dinheiro não chega. O fato de que países como Brasil e Cuba sejam os principais apoios, ao lado do Canadá, é sintomático.
Quanto tempo o Brasil vai ficar lá se essa situação perdurar?
Há três possibilidades de mudança: que as Nações Unidas digam que terminou a missão, que o governo do Haiti diga não queremos mais vocês aqui ou que o governo brasileiro diga nós não vamos ficar mais lá.
Não está se discutindo isso agora?
Que eu saiba não, mas é uma questão que sempre estará na agenda das Nações Unidas, do governo brasileiro ou do governo haitiano.
Os despachos americanos obtidos pela organização WikiLeaks falam da sua tentativa de tentar trazer de volta ao Haiti o presidente Jean-Bertrand Aristide, deposto em 2004. Como foi isso?
Todas as coisas no WikiLeaks aparecem de forma muito torta. Nas vésperas de eu ir para minha primeira missão política ao Haiti, houve uma reunião do Grupo do Rio [fórum latino-americano], na qual se tratou do Haiti e uma das perguntas era em que medida a pacificação deveria se estender também para uma negociação com Aristide.
Eu não fui ao Haiti com essa ideia fechada. Chegando lá, nos primeiros contatos que essa hipótese era absolutamente rechaçada por setores os mais variados. Eu tinha previsto uma conferência de imprensa para o último dia da minha permanência lá, decidi antecipar e deixei claro que nós não estávamos negociando a volta do Aristide.
Naquele momento, eu recebi da parte de muitos setores informações muito graves em relação ao Aristide. Em primeiro lugar de violação dos direitos humanos, sobre as quais eu tinha informação direta, porque eu conhecia muita gente anteriormente, eu já tinha ido ao Haiti anos atrás. Em segundo lugar, que ele estaria envolvido com tráfico de drogas e que também teria responsabilidade sobre problemas de corrupção.
Sobre esses temas eu não tenho possibilidade de opinar. Tomei nota e perguntei ao governo: se eles estavam tão convictos, por que não empreendiam um processo judicial? Disseram que iam fazer e não fizeram.
O sr. continua achando que a volta dele não seria conveniente?
Acho que no momento atual não seria conveniente. Agregaria mais pimenta nessa culinária política complicada. Mas as informações que eu tenho de várias fontes é que não está em cogitação a volta dele, talvez seja uma especulação suscitada pela volta do Baby Doc [o ex-ditador Jean-Claude Duvalier].
Desde a entrevista de Dilma ao "Washington Post" fala-se em mudança de ênfase na questão dos direitos humanos. Na nota em resposta à carta da representante do Parlamento iraniano, na semana passada, foi dito que o governo continuará a tratar os direitos humanos de maneira prioritária, mas de forma não seletiva e não discriminatória. Como isso vai se dar na prática?
A prática é que vai nos mostrar. Na entrevista ao "Post", a Dilma não usa essa terminologia diplomática, mas diz a mesma coisa, que a defesa dos direitos humanos deve se estender a toda e qualquer situação. Claro que temos que trabalhar nisso com muito cuidado. A ênfase que a presidenta deu não significa de maneira nenhuma que ela está propondo transformar o Brasil num enorme alto-falante giratório que vai denunciar todas as violações dos direitos humanos todo o tempo com igual intensidade.
Logo no dia em que ela me convidou para permanecer nas funções, ela disse: vamos denunciar isso [o apedrejamento de mulheres no Irã], mas vamos denunciar Guantánamo, Abu Ghraib [prisão americana no Iraque em que presos eram torturados].
Isso quer dizer que o Brasil vai se pronunciar sobre esses casos ou só em determinados fóruns e circunstâncias?
Ela mencionou concretamente uma questão, que tinha ficada contrariada com o voto na Terceira Comissão [da Assembleia Geral da ONU. quando o Brasil na absteve em resolução que condenou violações no Irã].
Vamos ter de qualquer maneira, e isso é um debate que está instalado no Itamaraty já antes disso, de fazer com que tanto na Terceira Comissão quanto no Conselho de Direitos Humanos [sediado em Genebra] as coisas sejam mais bem trabalhadas. Alguns países, porque têm um critério seletivo, apresentam um prato pronto contra determinados países, não por acaso sempre do Sul do mundo.
A questão é como o Brasil vai lidar com isso.
Uma questão é o próprio procedimento na apresentação dessas moções. Se alguém quer fazer propaganda, politização seletiva, não é um bom caminho. Nós podemos pensar em negociar uma resolução que seja equilibrada ou apresentar uma outra. Esse é um tema que não foi resolvido ainda, não pelo Brasil, mas nos espaços, seja o da Terceira Comissão ou o do Conselho de Direitos Humanos.
A orientação da presidente é ter uma posição mais proativa nessa questão?
Sim, mas eu acho que o Brasil teve. A leitura que foi feita no caso foi fortemente impregnada pelo fato de que ela estava mencionando um tema em particular que era o tema da Sakineh [Ashtiani, a iraniana condenada à morte por apedrejamento, em sentença ainda não executada].
Essa questão deve aparecer na Aspa, a Cúpula América do Sul-Países Árabes. São quase todos países autocráticos, tivemos o caso da Tunísia, onde dezenas de manifestantes foram mortos. O Itamaraty soltou uma nota branda, pedindo uma saída negociada.
Se você acha que nós vamos transformar as reuniões da Aspa num tribunal dos países árabes, é melhor não realizar as reuniões.Temos que ter muito cuidado, porque se depois, na reunião América do Sul-África, fizermos juízo sobre os governos da África, é melhor constituirmos um grande tribunal de opiniões. Nós temos que nos manifestar de forma criteriosa, enfática, proativa _não gosto da palavra mas vá lá.
No caso da Tunísia, a prudência das notas que foram emitidas correspondia à flutuação hora a hora da situação. Não tínhamos nenhuma relação particular com o governo da Tunísia, mais além da relação diplomática, mas claro que vemos com muita simpatia o avanço do processo democrático naquele país.
E ao Brasil não se poderá atribuir o que se atribui às grandes potências, que acobertavam o governo da Tunísia porque era um bom negócio e acreditavam que era uma barreira em relação ao fundamentalismo islâmico.
Então a abordagem desse tema dependerá da intensidade da relação?
A questão é que, se você quiser falar sobre a Tunísia, eu lhe dou uma lista de países sobre os quais nós podemos falar. Uma lista grande, porque está havendo fenômeno semelhante em outros países da redondeza. Nós vamos começar a se manifestar sobre isso?
É o que eu estou perguntando.
Nenhum país faz isso. O Brasil seria de uma originalidade extraordinária, e provavelmente aquele desejo de economizar em embaixada seria realizado, porque as embaixadas passariam a ser supérfluas. Nós nos relacionamos com os países como os países são, o que não significa que não vamos nos manifestar diante de determinadas situações. Temos que pesar quais são essas situações, como vamos nos manifestar.
Não posso aceitar que nos venham, sobretudo na Terceira Comissão, mas também no Conselho de Direitos Humanos, que nos venham dar lições de direitos humanos sobre alguns países e não sobre outros.
A Turquia sediou nestes dias nova reunião entre o Irã e as potências. Em relação ao Irã, o Brasil se manterá ativo na mediação da questão nuclear?
A atividade atual da Turquia, que tem sido inclusive discutida, informada e acordada com o Brasil, está se dando pela cessão do território. A Turquia não está participando da negociação. Acho até que seria muito positivo que não só a Turquia como o Brasil participassem.
Não assinamos a Declaração de Teerã por nenhuma afinidade com o governo iraniano. Assinamos porque, junto com a Turquia, considerávamos que era uma iniciativa que iria ajudar a resolver um foco de tensão internacional. Lamentavelmente, as grandes potências não entenderam assim.
Estamos convencidos de que fizemos o que tínhamos que fazer. Você poderá dizer que as declarações que o [presidente americano Barack] Obama fez mais de uma vez para o Lula, eu assisti a duas pelo menos: ajude-nos no Irã. Não estou dizendo que nos movemos por isso. Mas nos movemos tendo em conta também o fato de que havia essa demanda do Obama.
Quanto à Rússia e à China, você sabe que as sanções não valeram para elas. Você declara que vota as sanções, mas não sofre o ônus de tê-las votado, porque os interesses econômicos e estratégicos dos dois países no Irã foram preservados.
O Brasil então está informado da situação, mas não vai tomar nenhuma iniciativa?
Não estamos pensando nenhuma iniciativa, mas não estávamos pensando depois daquele movimento. Se amanhã ou depois a presidenta achar que pode ser feito outra iniciativa, se o Itamaraty considerar a proposta de outra iniciativa, nos analisaremos e faremos. No momento atual não vejo qual poderia ser.
A presidente foi convidada a visitar o Irã. Ela vai?
Ela já foi convidada a x países. O que estamos avaliando são aquelas viagens de primeiro ano, e está mais concentrado na América do Sul, na China, nos EUA. Ela vai à Bulgária, talvez na ida à Bulgária vá à Turquia.
A Prêmio Nobel da Paz iraniana Shirin Ebadi vem ao Brasil e disse que quer encontrar a presidente. Dilma vai recebê-la?
Aí é um problema da presidente decidir quem recebe. Outro dia veio uma jornalista iraniana [Roxana Saberi], que aliás foi elogiosa à posição brasileira, ainda que seja muito crítica ao regime, e eu a recebi. Ela disse que gostaria que a presidente ouvisse suas opiniões, eu respondi que ela podia ter a absoluta certeza que eu transmitiria suas opiniões.
Mas a Ebadi é um Prêmio Nobel.
A agenda da presidente depende de uma série de fatores. Ela pode recebê-la ou não. Se não receber, não significará que ela não tem consideração pelos pontos de vista da pessoa.
O que há de novidade na pauta com a Argentina, que a Dilma visitará na semana que vem?
A visita será diferente das anteriores porque houve uma aproximação entre os dois países nestes últimos semestres muito intensa, coincidindo com a presidência argentina e depois brasileira no Mercosul, que avançaram para limpar coisas que vinham se acumulando, como o Código Aduaneiro, a [dupla cobrança] da Tarifa Externa Comum, uma institucionalização maior [foi criada uma presidência do bloco, que será ocupada pelo ex-ministro Samuel Pinheiro Guimarães e terá papel de articulação].
O próprio [chanceler] Antonio Patriota mencionou a ideia de que nós começássemos a ter iniciativas comerciais internacionais associadas. Há uma discussão de acelerarmos a integração produtiva em alguns setores, entre os quais o automotriz, onde houve uma certa desnacionalização da produção de autopeças.
Da mesma forma que estamos constituindo um poderoso mercado na América do Sul, e sobretudo no eixo Argentina-Brasil, é de se esperar também que venhamos a constituir um poderoso eixo produtivo.
A segunda questão está ligada ao efeito do pré-sal na região. Queremos agregar valor ao petróleo, e teríamos que desenvolver uma parafernália industrial gigantesca na região. Já há setores de indústria naval na Argentina, no Uruguai, na Colômbia, na Venezuela que estão de olho nesse extraordinário movimento de industrialização que vai haver aqui na região.
O Brasil quer abrir para os vizinhos a participação nessa cadeia de produção, é isso?
Isso obedece a uma lógica maior. Queremos que a América do Sul seja um polo deste novo mundo multipolar que está se constituindo. O potencial da região é muito superior ao do Brasil sozinho.
A presidente conversou no dia da posse com o colombiano Juan Manuel Santos sobre o ingresso no Mercosul. Isso se confirma?
Eu vou à Colômbia em fevereiro. Esse tema está na agenda há muito tempo. Muitas pessoas querem isso, incluindo eu, porque acho que a Colômbia é extremamente importante na região. Nós fizemos uma aproximação razoável com o governo passado [de Álvaro Uribe] e o presidente Santos me dá a impressão de querer mudar radicalmente a agenda da Colômbia.
O Andrés Oppenheimer, colunista do "Miami Herald", diz que Santos está fazendo uma jogada para chamar a atenção dos EUA, que não aprovaram o acordo bilateral de livre comércio.
Se for uma jogada, tudo bem. Os presidentes têm que fazer suas jogadas também. Mas isso não impede que nós tenhamos uma relação muito boa com a Colômbia. Ela se fortaleceu no final do governo Lula. A percepção que tivemos quando Santos fez a visita de Estado aqui [logo depois de eleito] foi muito favorável.
O presidente Chávez também convidou a Dilma.
Ela vai. Ela quer ir a todos os países sul-americanas.
Como o sr. analisa as medidas de Chávez mais recentes e os recuos posteriores, como na reforma universitária?
Ele deve ter avaliado que não era uma coisa adequada e recuou.
Chávez teve um conflito recente com o secretário-geral da OEA (Organização dos Estados Americanos), José Miguel Insulza, que disse que a Lei Habilitante e outras medidas estariam em violação da Carta Democrática da organização.
Não estavam, esse é o problema. Acho que o Insulza deu um passo em falso nesse episódio. Ele poderia querer criticar por outras razões, o que acho que não é o caso porque a OEA não é o fórum para isso. Tanto é assim que o próprio Insulza recuou.
Essas supostas violações então não estão na letra da Carta?
Não.
Também a Comissão de Direitos Humanos da OEA divulgou relatórios, focando sobretudo a falta de independência do Judiciário venezuelano. Essa relatório é inapropriado, na sua avaliação?
Não conheço os detalhes do relatório, precisaria ver. Esses relatórios muitas vezes têm caráter seletivo também. Na maioria dos casos, não ajuda muito. Eu acho que foi positivo que o Chávez tenha recuado de alguns dos decretos baseados na Lei Habilitante [cláusula da Constituição venezuela que permite ao presidente governar sem passar pelo Congresso] e antecipado para maio o prazo de vigência da lei.
Nos telegramas vazados pelo WikiLeaks, há vários em que o sr. e o ex-ministro Celso Amorim dão conselhos aos americanos, sobre como lidar com Cuba, Venezuela. Tem uma frase de 2009 em que eles falam que o Brasil tem uma necessidade 'quase neurótica' de ser reconhecido como igual. Os EUA levam o Brasil a sério como o país gostaria de ser levado?
Não sei se levam e não estou preocupado. Os WikiLeaks, mais do que as informações substantivas que possam ter, revelam em alguns casos uma enorme distorção na preparação dos informes. Os meus são bem melhores, entre outras coisas porque estão despossuídos dessa obsessão psicanalítica, esse psicologismo vulgar.
Por outro lado, eles têm informes muito bem feitos. Por exemplo, o da embaixada em Honduras é extraordinário, porque é definitivo sobre a ocorrência do golpe de Estado [que depôs o presidente Manuel Zelaya em 2009] e juridicamente muito bem constituído. E talvez seja um informe que desfavoreça a posição oficial que o governo norte-americano adotou.
Quais são as orientações de Dilma sobre a relação com os EUA?
As relações nesse período todo eu considero que tenham sido muito boas, a despeito das diferenças. O governo Bush não tinha afinidades políticas maiores conosco, mas nós tivemos um relacionamento muito correto, cordial. O Bush veio duas vezes ao Brasil, não me lembro de nenhum presidente norte-americano que tenha vindo duas vezes ao Brasil.
O Lula foi algumas vezes aos EUA, foi recebido em Camp David. Houve uma discussão muita franca, nós sempre dissemos o que pensávamos e eles também. Em algumas ocasiões, tivemos conversas muito boas. A mais interessante foi a reunião dos presidentes latino-americanos com Obama em Trinidad Tobago [em 2009], onde o Lula disse algumas coisas que ele considerou que deveriam ser ditas sobre o relacionamento com a América do Sul.
Em várias ocasiões, quando me encontrei com o então subsecretário de Estado [para Assuntos Hemisféricos] Thomas Shannon [hoje embaixador em Brasília], ele me perguntou opiniões e eu dei.
Shannon fala em levar adiante uma agenda bilateral positiva, fala muito de biocombustíveis. Qual a avaliação de vocês de como isso está andando?
Isso parou um pouco, e tem que ser retomado. Mas quando falo numa agenda positiva, no sentido de coisas concretas, não quero dizer que vamos esquecer problemas de natureza política.
Temos problemas políticos que queremos discutir com os EUA, entre eles o relacionamento dos EUA com a América do Sul. Nos interessa que esse relacionamento melhore, que os EUA conversem com o Chávez, acho muito bom que a [secretária de Estado] Hillary [Clinton] tenha trocado palavras com o Chávez aqui. Por que isso não é uma prática cotidiana? Por que essas relações têm que estar sempre mediadas por alguns ideólogos? Por que a política externa americana tem que ser tão ideológica? Acho que a nossa é muito mais realista.
Essa palavra, ideológica, é muito usada pelos críticos da política externa do governo Lula. É tudo ideológico, com sinais diferentes?
Eu usaria também esse qualificativo para aqueles que no Brasil a aplicam a nós. Houve um determinado momento aqui em que eu era criticado porque era filiado ao PT e influía na política externa, e depois quando o Celso [Amorim] entrou para o PT.
É como se nunca houvesse tido ninguém filiado a partido político no Ministério de Relações Exteriores. O Afonso Arinos era da UDN, o San Tiago Dantas era do PTB, o Celso Lafer era tucano. Por que passou a ser pecado estar filiado a um partido político só quando o PT ganha a eleição?
O Fórum Social anunciou a presença do Lula no encontro deste ano.
Em princípio ele vai.
Falava-se que o ex-presidente Lula se dedicaria à questão da África. Tem algum projeto de ele fazer isso articulado com o governo atual?
Isso tem que ser perguntado à presidenta, mas acho que o Lula não fará nada que seja desarticulado com o governo. Ele se considera partidário deste governo. Todas as ações que vier a tomar no âmbito internacional serão convergentes com a política externa do governo.
*O sr. vai à China?
Devo ir. A relação tanto com os EUA quanto com a China tem que ser vista como a de um país emergente, o Brasil, com duas grandes potências mundiais. Uma econômica, política e militar e outra econômica com gravitação cada vez maior sobre uma região que é o centro dinâmico do mundo hoje. O mundo está se deslocando em direção ao Oriente.
Nós não podemos ter uma visão restrita a saldo comercial. Temos que preservar o saldo com a China, agregar mais exportação de manufaturas, corrigir as distorções do nosso saldo com os EUA. Mas não é só isso. Precisamos ter uma percepção estratégica dos dois países.
A China é acusada de pretender estabelecer uma relação neocolonial com a África, com a América Latina.
Uma relação neocolonial só se estabelece se o colonizador e o colonizado estão de acordo. Temos perfeitas condições de resolver esse tipo de problema. Nós temos, entre outras coisas, de resolver problemas de política interna. Vejamos a questão cambial, que incide sobre nossas exportações. Os EUA têm responsabilidade, a China tem responsabilidade, mas nós também. Da mesma forma que eles usam instrumentos de política interna que têm incidência sobre a política externa, também podemos fazê-lo.
A diferença que temos hoje é não vem ninguém aqui nos dizer como é que tem que ser nossas políticas monetária, cambial, nossa política macroeconômica de maneira geral. Nós decidimos.
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