Archibaldo Figueira
"Qual a razão de pressionarem o Brasil para abandonar o uso da a tecnologia do ciclo completo do combustível nuclear, e deixarem de lado a China, a Índia, a Coréia, o Paquistão e Israel, que possuem a tecnologia até da bomba atômica? A bem da verdade, qual a razão de não pressionarem as superpotências e o próprio USA?" Esta é a pergunta que Guilhermina Coimbra, doutora em Direito e Economia, professora na Universidade Federal Rural, presidente do Instituto de Integração das Nações e vice-presidente da Comissão de Ensino Jurídico e Advocacia da Federação Interamericana de Advogados, tem repetido, sem jamais obter resposta, em todos os eventos promovidos sobre o tema através do mundo.
Tão logo as eleições presidenciais no USA reconduziram o armamentismo ao rol das prioridades da política internacional, George W.Bush indicou, com a sutileza de um elefante, que para o Brasil receber do USA alguma atenção terá de ser ultra-condescendente diante da fiscalização da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e outras entidades controladas pelos ianques.
Pouco antes da reeleição ter prolongado a permanência desse criminoso, de periculosidade planetária, na gerência do império, dois dos mais importantes componentes da mídia imperialista, o jornal The New York Times e a revista Science dispararam torpedos contra os avanços dos brasileiros no complexo de Resende, estado do Rio de Janeiro.
Preparando a visita de inspetores da AIEA ao Brasil, aqueles veículos publicaram artigos afirmando, entre outras coisas, que "o programa nuclear brasileiro assusta o planeta"e que o sigilo em torno dele "apenas aumentou as suspeitas sobre a confiabilidade e as intenções do Brasil".
Já no Congresso Internacional de Direito Nuclear, realizado em Budapeste, Hungria, há cerca de três anos, Guilhermina Coimbra observava que a imprensa imperialista jamais exigiu o desarmamento dos fabricantes asiáticos da bomba atômica. Insistem, entretanto, em ignorar "a necessidade de um país como o Brasil ter a sua força para dissuadir eventuais antagonistas".
Veneno cavalar
Na Science os pesquisadores Liz Palmer e Gary Milhollin alertam que a fábrica de Resende tem capacidade para produzir até seis ogivas nucleares por ano e, se suas instalações forem ampliadas, em dez anos estará fabricando 63 ogivas anuais.
No The New York Times, o correspondente Larry Rohter (aquele mesmo que chamou Lula de bêbado) alardeia que o Brasil, "desde que começou a observar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear, em 1997, tem resistido em permitir pleno acesso a inspetores internacionais a uma fábrica secreta de enriquecimento de urânio, a 160 quilômetros do Rio de Janeiro". Acusa o gerenciamento militar de ter mantido um programa clandestino de armas nucleares, até 1985. Nos dias atuais "Ninguém diz mais, como antes, que o Brasil está engajado na fabricação de uma bomba nuclear, mas a preocupação é de que possa exportar urânio enriquecido, ou a tecnologia, e isso acabe nas mãos de Estados inamistosos ou terroristas. Nos anos 80, o país enviou secretamente para o Iraque urânio e assistência técnica." O jornal suspeita que "a resistência às inspeções esteja ligada à crença brasileira de que há uma conspiração internacional para impedir o Brasil de se tornar uma grande potência e que a Agência Internacional de Energia Atômica, embora imparcial, pretende roubar do Brasil uma valiosa tecnologia secreta".
"A situação tem sido complicada" — destaca o jornal — pelo aparente desejo do Brasil de lidar com o mundo externo."
Após os inspetores terem finalmente obtido acesso parcial à instalação de Resende neste mês, surgiram previsões de que o impasse seria logo contornado. Dispensam-se as profecias porque, afinal, o que os gerentes coloniais não fazem para agradar ao Imperium? Mesmo assim, os especialistas estrangeiros, para dissimular sua ação intervencionista, criam a ima gem de um confronto em torno das inspeções, particularmente em torno da campanha que por várias décadas foi promovida pela Marinha: a construção de um submarino nuclear.
Aula de lucidez
Na defesa do programa nuclear, a professora Guilhermina Coimbra observa que nada é mais estratégico na economia de um país do que o seu setor energético — "principalmente energia que gera eletricidade":
— Isto — diz ela —, está mais do que comprovado. É só lembrar o racionamento de energia imposto à população brasileira não faz muito tempo, em atendimento aos ditames do Fundo Monetário Internacional que, por considerar o investimento nas estatais brasileiras da área de energia elemento de déficit público, impediu o progresso nessa área.
E acende a luz para a questão da energia:
— Além do mais, é lógico, óbvio e notório, aquele que detém o poder de gerar, transmitir e distribuir energia tem o controle do país. Não há argumentos convincentes para justificar a privatização de boa parte da geração e toda a distribuição de energia no Brasil.
Recorda que o setor elétrico brasileiro era um modelo de eficiência:
— Lucrativo, gerava uma tecnologia de transmissão a longa distância, única no mundo. Atendia ao mercado com energia barata e limpa, através de um planejamento a longo prazo. Do mesmo modo, não há argumentos que justifiquem o Brasil desprezar nenhuma de suas fontes de energia,muito menos aquela originada dos minérios nucleares.
A jurista destaca que há mais de 50 anos o Brasil trabalha de maneira árdua e coerente para desenvolver um programa que forneça capacidade ótima de energia, independente dos fenômenos naturais.
— Sabido é que o Brasil tem um vasto potencial de minérios nucleares (urânio, tório, berilo, nióbio e outros) — diz a professora analisando as opções brasileiras — Sabido também que somente as reservas de urânio, em quiloca lorias, são 70 vezes superiores ao total das reservas brasileiras de carvão, petróleo e gás natural. Assim, não há uma só razão para o Brasil retardar usos da energia nuclear.
Fato surpreendente, revela a professora, a história da energia nuclear no Brasil iniciou-se ainda antes de 1940 e avançou até que o país, através dos diversos compromissos assumidos pelos seus governantes e suportados pela população de maneira tolerante e estóica, se tornou o maior cliente dos bancos internacionais e do Fundo Monetário Internacional.
O monopólio das armas
A professora Guilhermina alinha em seguida os marcos da história da energia nuclear no Brasil: — Do começo da Segunda Guerra Mundial até uns 20 anos do seu término, a vida intelectual e política brasileira nessa área foi marcada pela personalidade do almirante Álvaro Alberto que, consciente do nosso potencial de minérios energéticos nucleares, alertou Vargas sobre a necessidade de dar destinação utilitária a esse manancial. Isto permitiu ao Brasil situar-se entre os maiores produtores mundiais de urânio, nióbio e outros minerais energéticos. Álvaro representou o Brasil por duas vezes (1946-1947) no Conselho de Segurança de Energia Atômica da Comissão da Organização das Nações Unidas (ONU), onde iniciou a luta para conseguir acesso do Brasil à tecnologia nuclear. Tomando posição contra o controle internacional dos minerais nucleares e os princípios das compensações específicas, através do qual o Brasil deveria comercializá-los em troca da "transferência" de tecnologia, o almirante Álvaro Alberto, primeiro presidente do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), plantou as raízes da política nuclear brasileira.
Ao surgir a bomba atômica, as potências imperialistas passaram a dificultar o acesso à referida tecnologia e esmerar-se na construção de ideologias e teses geopolíticas que dessem uma aparência lógica, moral e de direito a um querer ilógico, imoral e contrário a todas as regras de Direito Internacional (consuetudinário, Cartas da ONU, da OEA e Direito da Concorrência da OMC, inclusive). Lembrou que, em 1947, em Viena, o Plano Baruch (proposto por Bernard Baruch, o chefe da representação do USA na AIEA/ONU) tentou controlar as reservas mundiais de minerais radioativos. Todos deveriam colocá-las sob a responsabilidade de organizações "internacionais". — O governo brasileiro da época — ressaltou — não concordou com tal proposta. Em 1950, aprovou-se no Brasil lei ordinária criando o monopólio dos minerais nucleares. Três anos depois, o Congresso elaborou e aprovou a Política Nacional de Energia Nuclear. Conversações com cientistas alemães, em 1953, resultaram na compra de três reatores nucleares alemães, para serem utilizados no enriquecimento de urânio no Brasil e na instituição de uma comissão de cientistas e industriais brasileiros e alemães para estudar a possibilidade de se construir uma usina de enriquecimento de urânio no país. Todas as negociações eram sigilosas, mas, quando os três reatores estavam para ser transferidos para o Brasil, foram embargados pela Comissão de Energia Atômica do USA. Em 1955, porém, o presidente Juscelino Kubitschek — após criar o Ministério das Minas e Energia e, subordinada a ele, a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) — ordenou o confisco dos três reatores alemães, cuja remessa para o Brasil havia sido embargada pela Comissão de Energia Atômica dos USA. Por esse tempo, a Universidade de São Paulo começou a construir o primeiro reator nuclear brasileiro. Em 1963, o presidente João Goulart anunciou a intenção de construir a primeira usina nuclear no Brasil, mediante joint ventures * com o Canadá e USA.
Com o término da fabricação do primeiro reator brasileiro, na Universidade de São Paulo (USP), criou-se a Companhia de Materiais Nucleares do Brasil. Um ano após o golpe contra-revolucionário de 1964 foi assinado, em Washington, o Acordo de Cooperação Nuclear entre o Brasil e o USA. Esse acordo, lembra Guilhemina Coimbra, gerou dependência tecnológica de equipamentos (reatores) e de urânio enriquecido, principalmente com a instalação de Angra I.
Colônia é colônia...
O urânio enriquecido só poderia ser adquirido no USA, não teria outra utilização que não a energia elétrica e teria de ser devolvido ao fornecedor da tecnologia, depois de utilizado. Até 1966, dentro do convencionado, nenhum depósito de urânio poderia ser "descoberto", no Brasil. Somente em Poços de Caldas, Minas Gerais, a presença de urânio foi detectada e confirmada — mas, os argumentos contra a exploração "eram os tendenciosos de sempre, objetivando desinformar a população brasileira sobre o seu imenso e inestimável patrimônio de minérios energéticos".
De 67 a 69, foi decidida a construção de mais uma usina nuclear e, em seguida, firmado o Acordo Brasil-Alemanha. O Brasil não assinou o Tratado de Não Proliferação Nuclear TNP, mas reconheceu a AIEA. A Índia, a China, o Paquistão e a Coréia do Norte recusaram o TNP considerando-o discriminatório.
Na gerência de Ernesto Geisel (1974 a 1979), foi assinado o Protocolo de Bonn, contratadas empresas nucleares alemãs e criadas as empresas nucleares brasileiras.
A intenção geral do Protocolo de Bonn era a de implementar no Brasil uma capacidade industrial em todas as áreas de propósitos pacíficos da energia nuclear e, ao mesmo tempo, promover a transferência de tecnologia. Mas pelo Protocolo de Bonn, o Brasil deveria suprir a demanda de urânio da Alemanha, enquanto que, em 1983, o Fundo Monetário Internacional (FMI) mandou a gerência do Brasil à época reprogramar o cronograma de construção das suas usinas nucleares.
A comunidade científica foi deixada de fora do Programa Nuclear Brasileiro oficial. Até a Companhia Nuclear de Engenharia de Equipamentos Pesados (Nuclep), uma das empresas nucleares criadas por Geisel foi proibida de ter os seus próprios projetos de engenharia e de comercializá-los. De 1984 a 1986 os cientistas, engenheiros, técnicos — apoiados pela Marinha — continuaram as pesquisas, chegando ao domínio completo do ciclo do combustível nuclear. Com isso a energia nuclear poderia ser usada em inumeráveis atividades, da engenharia à medicina, Em 1987, José Sarney, na gerência do Estado brasileiro, anunciou precipitadamente que os brasileiros estavam aptos a desenvolver a tecnologia nuclear. Nessa época aconteceu algo muito estranho: — A reação não se fez esperar. Aproveitaram-se do "incidente nuclear" de Goiânia para tentar convencer à população brasileira que, se os nossos técnicos não conseguiam administrar uma bomba de Césio-137, seriam incapazes de lidar comercialmente, com a energia nuclear.
A Constituição de 88 estabeleceu o monopólio da pesquisa, da lavra, do enriquecimento, do reprocessamento, da industrialização e do comércio dos minérios e minerais nucleares e seus derivados. Assim, a União não pode contratar empresas privadas para a realização de nenhuma dessas atividades. Mas em 1989 e 1992, o governo brasileiro assinou diversos acordos e tratados internacionais concernentes ao uso da energia nuclear.
Guilhermina Coimbra destaca, entre eles, o Acordo de Salvaguardas Brasil-Alemanha-AIEA "altamente prejudicial aos interesses brasileiros", mas ressalva que não se firmou o pior de todos, o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP) apesar de anos de terríveis pressões externas.
Quando a política de subjugação nacional voltou, ainda mais desavergonhada, em 1994, o Congresso referendou esse tratado e Fernando Henrique Cardoso o ratificou, frustrando 50 anos de esforços para o desenvolvimento da energia nuclear no Brasil.
*Joint-venture —união de risco em que empresas nacionais ou estrangeiras (empresas privadas e públicas) se "associam" a um projeto econômico ou financeiro.
Fonte: A nova democracia
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