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A questão urbana poderia ocupar um papel de grande centralidade na Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável – Rio+20. No entanto, o Draft Zero, primeira versão do documento elaborado pela ONU para ser assinado pelos chefes de Estado que vierem ao Brasil, não permite ser otimista a esse respeito: o tema “Cidades” foi tratado de forma genérica, merecendo apenas seis linhas, sem nenhum compromisso ou análise aprofundada. O artigo é de Nabil Bonduki.
Nabil Bonduki (*) Carta Maior
A questão urbana poderia ocupar um papel de grande centralidade na Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável – Rio+20, que ocorrerá em junho, no Rio de Janeiro. Como a erradicação da miséria se destaca na pauta da conferência, dar maior protagonismo aos temas urbanos seria óbvio, posto que a cidade é, por excelência, o lócus onde se articulam as questões ambiental e social.
No entanto, o Draft Zero, primeira versão do documento elaborado pela ONU para ser assinado pelos chefes de Estado que vierem ao Brasil, não permite ser otimista a esse respeito: o tema “Cidades” foi tratado de forma genérica, merecendo apenas seis linhas, sem nenhum compromisso ou análise aprofundada. No atual quadro de crise econômica dos países ricos, os estados integrantes da ONU parecem não estar muito dispostos a dar passos relevantes na Rio+20, em um claro retrocesso em relação à Eco 92.
Cabe, então, à sociedade civil aprofundar esse tema, aproveitando a enorme mobilização que deverá ocorrer na Cúpula dos Povos, evento paralelo que reunirá dezenas de milhares de militantes de movimentos e entidades da sociedade civil.
Embora o movimento da reforma urbana nunca tenha priorizado a perspectiva ambiental, sua agenda, no fundamental, não se contrapõe a da sustentabilidade. Pelo contrário, elas são profundamente relacionadas e complementares. O trabalho que desenvolvi, no último ano no Ministério do Meio Ambiente, como Secretário Nacional de Ambiente Urbano, na construção de uma agenda de sustentabilidade urbana, buscou articular essas duas perspectivas, baseado na premissa de que sem reforma urbana não se alcançará a chamada “cidade sustentável”.
O modelo urbano que predomina nos países emergentes e pobres, onde ocorre acelerado processo de urbanização, além de socialmente injusto, é ambientalmente insustentável. Marcado pela desigualdade sócio-territorial, apropriação privada da terra, especulação imobiliária, proliferação de assentamentos humanos precários e priorização para o automóvel, esse modelo se caracteriza por fortes impactos ambientais, que também levam à precarização da qualidade de vida: poluição dos cursos d’água, destinação inadequada de esgoto e lixo, catadores fazendo coleta seletiva em condições subumanas nos lixões, solo, subsolo e recursos hídricos contaminados com substâncias químicas persistentes utilizadas na produção industrial, contaminação do ar gerada por um insustentável sistema de mobilidade, invasão das áreas de proteção permanente nos cursos d’água, nascentes e encostas íngremes, gerando desastres naturais e carência de espaços públicos e verdes.
As populações pobres e vulneráveis são as que mais sofrem com esses problemas ambientais. Surpreendentemente, ainda se ouve, em debates urbanos, uma concepção atrasada, embora às vezes proferida por militantes de esquerda, segundo a qual a preocupação ambiental é coisa de países e segmentos sociais ricos e privilegiados, que já teriam “resolvido” seus problemas básicos de sobrevivência; que primeiro precisaríamos incluir os mais pobres no mercado de consumo, como por exemplo, na sociedade do automóvel, para depois cuidar do meio ambiente.
Segundo essa visão – equivocada, elitista e preconceituosa – os pobres precisariam cuidar antes de “coisas mais importantes” do que o meio ambiente. Ao contrário, acredito que essas agendas precisam caminhar juntas: reforma e sustentabilidade urbanas são faces diversas de uma mesma luta pelo direito à função socioambiental da propriedade e da cidade, tendo como horizonte a qualidade de vida para todos.
Outro equívoco é acreditar que a crise econômica deve ser enfrentada com o crescimento e o desenvolvimento a qualquer custo, sem levar em conta os aspectos ambientais. Para estes, a única saída para manter o nível de emprego é facilitar o investimento ou distribuir isenções fiscais para os setores econômicos que mais contribuem para o PIB. Perde-se, assim, a oportunidade de aproveitar a crise para introduzir um novo projeto de desenvolvimento mais sustentável, em especial no meio urbano. É o caso do estímulo à produção de automóveis, recentemente lançado, cujo efeito nefasto para as cidades é mais do que conhecido.
A agenda de sustentabilidade urbana se viabiliza e ganha força quando estiver integrada ao ideário da reforma urbana. A ocupação habitacional das APPs urbanas, de mananciais e de outras áreas de proteção ambiental, assim como os eventos extremos e desastres naturais, só poderá ser enfrentada seriamente quando estruturada uma política fundiária capaz de garantir terra urbanizada e bem localizada para a produção de habitação social.
A unificação dessas agendas é fundamental para romper o imobilismo que se nota nos movimentos sociais urbanos e atualizá-los com uma nova perspectiva, assim como para extravasar certo elitismo que ainda prevalece nas lutas ambientalistas. A Rio+20, em especial a Cúpula dos Povos, é uma oportunidade para debater uma pauta de lutas e mobilizações, baseadas em princípios e em uma agenda comuns, na perspectiva de formular uma estratégia capaz de gerar cidades mais sustentáveis e inclusivas.
(*) Nabil Bonduki é arquiteto e urbanista, professor de planejamento urbano na FAU-USP. Foi vereador em São Paulo (2001-4), relator do Plano Diretor Estratégico de São Paulo (2002) e Secretário Nacional de Ambiente Urbano do Ministério do Meio Ambiente (2011-2).
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