Qual é a verdadeira reforma tributária que o Brasil e os brasileiros precisam. Com um tema tão importante de um lado, de outro tão distante dos brasileiros, não deveria estar nas escolas? Como trazer essa discussão para todos os brasileiros?
Reforma tributária para quem e para quê
Brasil / Reforma tributária
Mais para quem tem mais
A maioria da população brasileira continua afastada da discussão sobre a reforma tributária. A nova proposta, em trâmite na Câmara dos Deputados, está longe de resolver problemas estruturais e deve continuar servindo aos detentores da riqueza, sem tocar em questões como a herança, a propriedade e a progressividade
por Odilon Guedes
O recente projeto de reforma tributária em tramitação na Câmara dos Deputados tem uma característica muito semelhante a todos os outros elaborados nos últimos anos no Brasil: está sendo pouco discutido pelos verdadeiros interessados, a maioria do povo brasileiro.
O debate em torno desse assunto sempre acaba centrado na diminuição dos impostos, já que a carga tributária é considerada alta em relação aos serviços oferecidos pelo Estado. Os que mais defendem sua redução são os empresários, baseados no argumento de que, ao pagar muitos tributos, seus negócios ficam prejudicados. Entre os excluídos do debate está a maior parte da população, em especial sua camada mais pobre – proporcionalmente a que mais contribui –, que não tem a menor idéia de como os impostos pesam no seu bolso. Este artigo visa contribuir para a discussão sobre o tema, apresentando, inclusive, alguns dados que permitem visualizar o tipo de reforma tributária de que o Brasil precisa. Uma reforma que além de tornar mais justa a carga tributária contribua também para distribuir as riquezas.
Desde o tempo de João Sem Terra
A questão tributária tem sido causa ou pretexto de inúmeras revoluções e transformações sociais na história da humanidade. Em 1215, ano em que foi promulgada a Constituição inglesa, um dos pontos centrais acordados entre o Conselho de Nobres e João Sem Terra, baseava-se no fato de que, dali em diante, não poderia ser criado nenhum tributo pelo rei sem que o Conselho fosse consultado. Havia algumas exceções pontuais, como na ocasião do primeiro casamento de sua filha mais velha ou quando seu primogênito se tornasse cavaleiro. Na mesma Inglaterra, a revolução burguesa que eclodiu na primeira metade do século XVII teve como um dos motivos a cobrança de tributos. O rei Carlos I, para reforçar o absolutismo, começou a exigir o pagamento de impostos que já haviam caí-do em desuso. O ship money, por exemplo, criado para proteger as cidades portuárias de ataques piratas, foi cobrado até mesmo no interior do país, onde dificilmente haveria esse tipo de ataque. O fim do rei foi inevitavelmente a decapitação.
Nos Estados Unidos, a celebração da independência em 4 de julho faz lembrar que uma das razões que contribuíram para o início da guerra de libertação foi a cobrança de impostos como o Sugar Act, de 1764, que taxava produtos que não viessem das Antilhas Britânicas; o Stamp Act, de 1765, que exigia selagem até de baralhos e dados – posteriormente revogado –; e o Tea Act, de 1773, que concedia o monopólio do comércio do chá à Companhia das Índias Orientais. Este último causou uma grande revolta em que os colonos americanos se vestiram de índios e jogaram ao mar o chá dos navios da Companhia ancorados no porto de Boston.
Já a Revolução Francesa teve como um de seus estopins o aumento de impostos, decretado pelo rei para enfrentar a grave crise econômica e social que assolava o país após a derrota para a Inglaterra na Guerra dos Sete Anos.
No Brasil, a questão da cobrança de impostos marcou profundamente algumas rebeliões ao longo da história. A primeira delas foi a Inconfidência Mineira, tentativa de libertar o país de Portugal que resultou no enforcamento do herói Tiradentes e no desterro dos líderes envolvidos no movimento. O motivo principal da revolta foi a “derrama”, isto é, a cobrança de impostos atrasados feita pelos colonizadores portugueses aos moradores de Minas Gerais.
Entre as décadas de 1830 e 1840, a província do Rio Grande do Sul foi palco do mais longo conflito armado do Brasil, a Guerra dos Farrapos. A causa central foi a taxação do charque (carne seca) riograndense pelo governo imperial e a isenção de impostos para o mesmo produto importado do Uruguai e da Argentina. Naquele momento, a elite gaúcha se sentiu profundamente prejudicada porque havia perdido a competitividade no mercado interno. Já no fim do século XIX um dos pretextos para o exército brasileiro cercar e destruir a comunidade de Canudos – interior da Bahia – foi o fato de seu líder, Antônio Conselheiro, pregar aos habitantes de vários municípios do interior do Nordeste brasileiro o não-pagamento dos impostos instituídos pelo regime republicano.
Os pobres pagam mais
A questão da injustiça tributária no Brasil é gravíssima, e podemos dizer, com toda segurança, que as camadas mais pobres da população pagam proporcionalmente mais impostos no país. Vários estudos feitos pelo Unafisco (órgão dos auditores fiscais da Receita Federal) e pela Universidade de São Paulo (USP) comprovam claramente tal situação. Mostram que as pessoas cuja renda familiar alcança até dois salários mínimos gastam 48,9% de seus recursos mensais com o pagamento de tributos, enquanto famílias que têm uma renda superior a 30 salários mínimos comprometem apenas 26,3%.
Esse brutal descompasso ocorre porque mais de 50% da carga tributária no país é indireta, isto é, incide sobre o consumo. Na maioria dos países capitalistas desenvolvidos, a carga tributária direta é muito mais acentuada que a nossa, recaindo sobre a renda, a riqueza, a propriedade e a herança. Os dados apresentados pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT) ilustram a regressividade na cobrança de tributos em nosso país. Do total que se paga da conta de luz, por exemplo, 45,8% são de impostos. Assim, se um cidadão gastar R$ 100,00 de energia, R$ 45,80 vão para os cofres públicos, independentemente do fato de ele ganhar um salário mínimo ou R$ 50 mil por mês. Em relação a um quilo de açúcar, a carga tributária é de 40,5%, e sobre o litro de gasolina incide 53,0%. Já a taxação dos impostos sobre a renda, a riqueza, a propriedade e a herança é muito baixa, especialmente quando comparada à de outros países.
No Brasil existem somente duas faixas de cobrança do Imposto de Renda (IR): para os salários entre R$ 1.371,82 e R$ 2.743,25, a alíquota é de 15%, e para os que ultrapassam esse valor é de 27,5%. A isenção é aplicada para remunerações até R$ 1.372,81. Nesse contexto, é importante lembrar que, entre 1983 e 1985, havia 13 faixas com variação de 0% a 60% nas alíquotas e intervalos de 5%.
Para efeito comparativo, nos Estados Unidos existem cinco faixas, cujas alíquotas variam de 15% a 39,6%; na França são 12 faixas cujas alíquotas variam entre 5% e 57%; e na Holanda, há quatro faixas com variação de 6,2% a 60%. Por outro lado, nos países denominados em desenvolvimento, alguns exemplos mostram a seguinte situa-ção: no Chile existem seis faixas cujas alíquotas vão de 5% a 45%; na Argentina são sete faixas, variando as alíquotas entre 9% e 35%; e na Bolívia há cinco faixas, de 15% a 30% 1.
O imposto sobre herança é definido pelo artigo 155 da Constituição Federal brasileira, em que consta que a responsabilidade pelo estabelecimento dos percentuais- cobrados é dos estados. Em São Paulo, por exemplo, a alíquota é de 4%. Se comparada com a de outros países, notamos uma diferença brutal: na Inglaterra, onde esse tipo de imposto é cobrado há mais de 300 anos, os jornais ingleses noticiaram que o fisco ficou com metade dos US$ 30 milhões deixados pela princesa Diana para os seus filhos. Lá, a taxação é apoiada até pelos conservadores. Tanto que, segundo matéria da revista Veja, publicada em setembro de 2007, o primeiro-ministro inglês Winston Churchil, que conduziu a Inglaterra na luta contra os nazistas, costumava dizer que o imposto sobre a herança era infalível para evitar a proliferação de “ricos indolentes”.
Nos Estados Unidos, esse tributo tem uma alíquota de 47% para fortunas acima de US$ 1,5 milhão, e no Japão, a alíquota é de 70% 2. Os números vindos de fora contribuem para demonstrar como o mesmo imposto é extremamente baixo no Brasil. Tendo em vista ainda o alto índice de concentração de riqueza no país, concluímos que há uma ampla margem para aumentar sua cobrança.
Outra distorção flagrante pode ser notada na arrecadação dos impostos sobre a propriedade – o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), de âmbito municipal, e o Imposto Territorial Rural (ITR), de âmbito federal. Nos 12 meses de 2007, foram arrecadados, em todo o território nacional, cerca de R$ 379 milhões na cobrança do ITR, segundo dados da Receita Federal. O valor consegue ser menor do que dois meses de contribuições recolhidas de IPTU apenas na cidade de São Paulo.
Ao mesmo tempo, de acordo com dados do Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Brasil tem um universo de 5 milhões de propriedades rurais. Destas, apenas 26 mil – menos de 1% do total – detêm 46% das terras. Outros 55 mil imóveis são classificados como latifúndios improdutivos e detêm 120 milhões de hectares. Paralelamente, o agronegócio movimenta bilhões de reais e utiliza cada vez mais áreas para o plantio da cana-de-açúcar. E o capital internacional avança cada vez mais na compra de terras na Amazônia e por todo o país. Comparando o cenário do campo com o baixo valor arrecadado pelo ITR, pode-se concluir que, na prática, os latifundiários e grandes proprietários rurais não pagam esse tipo de imposto no país.
O Brasil figura entre as 12 economias mais ricas do mundo, mas tem um número alto de pessoas com renda irrisória. O grande problema é a extrema concentração da riqueza. Dados publicados pelo economista Márcio Pochmann mostram que 5 mil famílias brasileiras detêm um patrimônio da ordem de US$ 250 bilhões. Por outro lado, o ministro de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, demonstra, num estudo, que 70% dos títulos da dívida pública do Brasil, hoje na casa dos R$ 1,3 trilhão, estão nas mãos de 30 mil famílias. Em 2007, o pagamento dos juros dessa dívida chegou a R$ 160 bilhões. Logicamente, 70% desse valor ficou em posse das tais 30 mil famílias 3. É, portanto, mais do que urgente a aprovação do imposto sobre as grandes fortunas.
A reforma de que o Brasil precisa
Diante desse quadro totalmente desequilibrado e injusto, é preciso refletir sobre o tipo de reforma tributária de que a população brasileira precisa. Logicamente, não se deve ignorar que são importantes as definições sobre a cobrança do ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços), sobre o número de alíquotas deste imposto e do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), e a possível criação do IVA (Imposto sobre o Valor Agregado). Mas essas questões precisam estar submetidas às decisões sobre as características básicas da reforma pretendida.
Muitas orientações vêm sendo propostas por vários especialistas da área tributária que se preocupam com os problemas sociais do Brasil. Eles percebem claramente a necessidade de fazer justiça social utilizando como instrumento importante a cobrança de tributos. Adam Smith já afirmava, na História da riqueza das nações, que “os súditos de todo Estado deveriam contribuir para sustentar o governo, tanto quanto possível em proporção às suas respectivas capacidades 4”.
Abaixo, elenco dois grandes eixos que deveriam embasar a reforma tributária 5:
• Redução de tributos sobre o consumo e isenção da cesta básica
Uma das vertentes que a reforma tributária deve ter em vista é a redução da carga tributária sobre o consumo. É uma medida extremamente positiva porque diminui a regressividade na cobrança de impostos e beneficia a classe média e, principalmente, a população de baixa renda, melhorando seu poder aquisitivo. A isenção de cobrança de impostos indiretos na cesta básica também é de grande importância porque tem o efeito de diminuir o custo de vários produtos de consumo popular, o que permite, indiretamente, a elevação da renda da população e possibilita uma melhoria em sua qualidade de vida.
• Aumento da taxação sobre a renda, a riqueza, a propriedade e a herança
A outra vertente deve se apoiar na taxação mais acentuada e progressiva da renda, da riqueza, da propriedade e da herança, proporcionando a abertura de um amplo espaço para fazer justiça social. A adoção de tal medida compensará a perda dos impostos em decorrência da diminuição dos tributos sobre o consumo e da isenção da cesta básica. Além disso, abrirá a possibilidade de reduzir a carga tributária incidente sobre pequenos e médios produtores e também sobre ramos industriais que atendam aos interesses da sociedade brasileira.
Em relação ao Imposto de Renda, uma proposta possível é aumentar o número de faixas e a amplitude de sua cobrança. Pode-se estipulá-la a partir de um patamar de R$ 1.987,51, que é o salário mínimo definido pelo Dieese para maio de 2008, e criar 12 faixas, com variação de 5% a 60% nas alíquotas e com intervalos de 5%, semelhante ao que ocorria em nosso país entre 1983 e 1985. É necessário destacar ainda que, nesse caso, há outras questões a serem discutidas e alteradas, como a atual isenção sobre a distribuição de lucros para sócios das empresas, tanto no Brasil como no exterior, e a isenção para remessa desses lucros.
Sobre a questão da propriedade, a cobrança de impostos como o IPTU e o ITR deve ser feita de forma progressiva em todo o país. É preciso tornar pública a razão de a arrecadação do ITR ser irrisória hoje e caminhar para um estágio em que os grandes proprietários rurais e o agronegócio passem, definitivamente, a pagar impostos sobre suas propriedades.
Quanto ao imposto sobre herança, uma proposta viável é elevar sua alíquota de forma progressiva, pois ela é baixíssima no Brasil. Em razão da alta concentração de riqueza que há em nosso país, deve-ríamos ter como referência a tributação de cerca de 50% estabelecida na Inglaterra e nos EUA. Isso possibilitaria ampliarmos a arrecadação e diminuirmos a regressividade da carga tributária, além de garantirmos o mínimo de justiça social.
Já o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), previsto na Constituição Federal de 1988, poderia ser cobrado também de forma progressiva, segundo proposta do economista Amir Khair, arbitrando-se um nível mínimo de isenção e incidindo, por meio de alíquota reduzida, sobre o valor daquele patrimônio declarado no Imposto de Renda ao final do exercício, de pessoas físicas e jurídicas, que exceder o valor da isenção. O projeto em tramitação na Câmara dos Deputados prevê que 51,6% do IGF sejam direcionados para estados e municípios.
É importante destacar, como forma de apoio à aprovação desse imposto, dados do Fundo Monetário Internacional (FMI) que mostram que a riqueza e o Produto Interno Bruto (PIB) mundial atingiram, em agosto de 2007, US$ 190 trilhões e US$ 48 trilhões respectivamente. Ou seja, a riqueza é quatro vezes superior ao PIB. Como já reiteramos, o Brasil apresenta uma das mais perversas distribuições de renda e riqueza do planeta e, diante desse quadro, podemos deduzir que entre nós a concentração deve ser bem maior do que a apresentada pelo FMI. Portanto, a aprovação do IGF é urgente.
Em síntese, essas são questões vitais na elaboração de uma autêntica reforma tributária no Brasil, que seja verdadeiramente capaz de promover mais justiça e igualdade de direitos.
Odilon Guedes
economista, mestre em economia pela PUC-SP, é professor das Faculdades Oswaldo Cruz. Foi presidente do Sindicato dos Economistas no Estado de São Paulo e vereador na cidade de São Paulo.
1 Waterhouse & Coopers/Unafisco Sindical.
2 Mais informações disponíveis em http://www.legiscenter.com.br.
3 O Atlas da exclusão social – Os ricos no Brasil, publicado pela Editora Cortez em 2004, é outra referência importante em que se demonstra a enorme concentração da renda e riqueza em nosso país.
4 História da riqueza das nações, Adam Smith, São Paulo, Nova Cultural, 1985.
5 Uma questão preliminar a ser destacada e definida antes de discutir as propostas é autorizar a progressividade dos impostos como determina a Constituição Federal, no parágrafo 1º do artigo 145. Isso porque a progressividade é um instrumento de importância fundamental para fazer justiça tributária.
Palavras chave: Brasil, Reforma tributária, Sociedade
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