Por Conceição Oliveira do Blog Maria Frô, twitter: @maria_fro
Qualquer feminista em sã consciência sabia que a prisão de Assange nada tinha a ver com a proteção das mulheres ou o combate da violência contra as mulheres. Este texto contundente de Naomi Wolf deixa bastante claro o uso político que Inglaterra e Suécia, a serviço dos Estados Unidos, fizeram da denúncia de ‘estupro’ por Assange para impedir o trabalho dos wikileaks. Ao mesmo tempo, denuncia como direitos humanos não significam nada para esses países quando as vítimas são reais: mulheres desempoderadas.
J’Accuse: Suécia, Inglaterra e a Interpol insultam as vítimas de violação de todo o mundo
Por: Naomi Wolf*, via Grupo Beatrice, Publicado originalmente, em inglês, pelo Huffington Post
Traduzido por Esquerda.net
24/12/ 2010
Como sei que o tratamento dado pela Interpol, Inglaterra e Suécia a Julian Assange é uma forma de fazer teatro? Porque sei o que acontece em acusações de violação contra homens que não “atrapalham” governos poderosos.
Julian Assange, o fundador da WikiLeaks esteve detido em isolamento na prisão de Wandsworth antes do interrogatório sobre acusações estatais de molestação sexual. Muita gente tem opiniões sobre as acusações. Mas cada vez mais acredito que só aqueles de entre nós que passaram anos trabalhando com sobreviventes de violação e agressão sexual por esse mundo afora e que conhecem a resposta legal padrão a acusações de crime sexuais, compreendem totalmente como esta situação é uma paródia contra aqueles que têm de conseguir viver com o modo como as acusações de crime sexual são vulgarmente tratadas – e como esta situação é um profundo e mesmo enojante insulto aos sobreviventes de violação e agressão sexual em todo o mundo.
O que quero dizer é isto: os homens praticamente nunca são tratados da maneira que Assange está a ser tratado face acusações de crimes sexuais.
Comecei a trabalhar como advogada num centro inglês de vítimas de violência sexual nos meados dos meus 20 anos. Também trabalhei como advogada num abrigo para mulheres vítimas de violência nos EUA, onde a violência sexual fazia muitas vezes parte dos padrões de abuso. Passei desde então duas décadas viajando pelo mundo fazendo relatos sobre sobreviventes de agressão sexual e entrevistando-as e aos seus advogados, em países tão diversos como Serra Leoa e Marrocos, Noruega e Holanda, Israel e Jordânia e os Territórios Ocupados da Palestina, Bósnia e Croácia, Inglaterra, Irlanda e Estados Unidos.
Digo isto na qualidade de pessoa que registrou relatos em primeira mão. Dezenas de milhares de meninas adolescentes foram raptadas sob a mira de armas e mantidas como escravas sexuais na Serra Leoa durante a guerra civil naquele país. Foram atadas a árvores e a estacas no solo e violadas por dúzias de soldados uma a uma. Muitas delas tinham apenas doze ou treze anos. Os seus violadores estão em liberdade.
Encontrei uma menina de quinze anos que arriscou a vida para fugir de seu captor no meio da noite, levando o bebê que resultou da sua violação por centenas de homens. Caminhou da Libéria até um campo de refugiados na Serra Leoa, descalça e perdendo sangue, vivendo de raízes no mato. O seu violador, cujo nome ela conhece, está em liberdade.
Generais a todos os níveis instigaram esta agressão sexual duma geração de meninas por todo o país. Os seus nomes são conhecidos. Estão em liberdade. Na Serra Leoa e no Congo, os violadores usaram muitas vezes objetos contundentes ou afiados para penetrar a vagina. Rasgões e lesões vaginais, chamados fístulas vaginais, proliferam, como qualquer trabalhador da saúde naquela região pode certificar, mas a assistência médica muitas vezes não está disponível. Portanto as mulheres que foram violadas deste modo frequentemente sofrem com corrimentos constantes e mal odorosos por infecções que podiam ser tratadas com um antibiótico de baixo custo – estivesse ele disponível. Por causa das suas lesões, são evitadas pelas comunidades e rejeitadas pelos maridos. Os violadores estão em liberdade.
Mulheres – e meninas – são drogadas, raptadas e traficadas às dezenas de milhares para a indústria sexual na Tailândia e pela Europa Oriental afora. São mantidas como prisioneiras virtuais por proxenetas. Se se entrevistar as mulheres que passam as suas vidas a tentar resgatá-las e reabilitá-las, elas atestam o fato de que esses raptores e violadores de mulheres são bem conhecidos das autoridades locais e até nacionais – mas esses homens nunca são alvo de acusações. Esses violadores estão em liberdade.
No conflito na Bósnia, a violação era arma de guerra. As mulheres foram presas em barracas utilizadas para esta finalidade e violadas, novamente sob a ponta da espingarda, durante semanas uma a uma. Elas não podiam fugir. Audiências minimalistas depois do conflito resultaram em sentenças de leve admoestação para um punhado de violadores. A vasta maioria dos violadores, cujos nomes são conhecidos, não sofreu acusações. Os militares que perdoaram esses ataques, cujos nomes são conhecidos, estão em liberdade.
As mulheres que testemunhem ter sido violadas na Arábia Saudita, na Síria e em Marrocos arriscam-se a ser presas e espancadas e a ser abandonadas pelas famílias. Os seus violadores quase nunca sofrem acusações e estão em liberdade.
As mulheres que são testemunhas em casos de violação na Índia e no Paquistão foram sujeitas a homicídios de honra e a ataques com ácidos. Os seus violadores quase nunca sofreram acusações, quase nunca são condenados. Eles estão em liberdade. Um caso bem conhecido dum playboy nascido em berço de ouro na Índia acusado de violar uma empregada de mesa violentamente – que estava disposta a testemunhar contra ele – resultou em encobrimento aos níveis mais altos da investigação policial. Ele está em liberdade.
E que tal alguns casos mais típicos, mais perto de nós? Nos países ocidentais como a Inglaterra e a Suécia, que estão se unindo para manter Assange sem fiança, se efetivamente se entrevistar mulheres que trabalhem em centros de emergência para casos de violação, ouvir-se-á isto: é incrivelmente difícil conseguir-se uma condenação por um crime sexual, ou mesmo uma audiência séria. Os trabalhadores em centros de emergência para casos de violação na Inglaterra e na Suécia dirão que há atrasos enormes no trabalho com mulheres violadas durante anos por pais ou padrastos – que não conseguem que se faça justiça. As mulheres violadas por grupos de homens jovens bêbados, atiradas da parte de trás dos carros para fora, ou abandonadas depois de violação em grupo num beco – que não conseguem que se faça justiça. As mulheres violadas por conhecidos não conseguem uma audiência séria.
Nos EUA ouvi falar em dúzias de mulheres jovens que foram drogadas e violadas em cidades universitárias pelo país fora. Há quase inevitavelmente um encobrimento pela universidade – que é garantido se os seus violadores forem atletas destacados na universidade ou abastados – e os seus violadores estão em liberdade. Se se chegar a inquérito policial, ele raramente vai muito longe.
Violação num encontro? Esqueça. Se uma mulher tiver bebido algo, ou se tiver tido anteriormente sexo consensual com o seu atacante, ou se houver ambiguidade sobre a questão do consentimento, ela quase nunca consegue uma audiência séria ou uma verdadeira investigação.
Se a rara mulher de classe média que apresente queixa de violação contra um estrangeiro de fato for tratada seriamente pelo sistema legal – porque inevitavelmente esses são os poucos e raros casos que o estado se dá ao trabalho de ouvir – ainda assim vai encontrar barreiras inevitáveis a qualquer espécie de verdadeira audiência para não dizer a uma verdadeira condenação: «falta de testemunhas» ou problemas com as provas, ou então um discurso de que até um ataque claro é atingido por ambiguidades.
Se, ainda mais raramente, um homem for, de fato, condenado, será quase inevitavelmente uma condenação mínima, insultuosa na sua trivialidade, porque ninguém quer «arruinar a vida» de um homem, muitas vezes um homem jovem, que «cometeu um erro». (As poucas exceções tendem a considerar uma disparidade previsível de raças – homens negros realmente chegam a ser condenados por ataques a mulheres brancas de classe média que eles desconhecem).
Por outras palavras: nunca em vinte e três anos de relatos e apoio a vítimas de violência sexual pelo mundo afora alguma vez eu ouvi falar de um caso dum homem procurado por duas nações e mantido preso em isolamento sem fiança antes de ser interrogado – para qualquer alegada violação, mesmo a mais brutal ou mais fácil de provar.
Quanto a um caso que implica o tipo de ambiguidades e complexidades das queixas dessas pretensas vítimas – sexo que começou consensualmente e que alegadamente se tornou não-consensual quando a discussão surgiu em volta dum preservativo – por favor, encontre em qualquer parte do mundo, outro homem hoje na prisão sem fiança por alguma acusação que se lhe compare.
Claro que «não é não», até depois do consentimento ser dado, quer se seja homem ou mulher; e claro que os preservativos devem sempre ser usados se houve acordo quanto a isso. Como diria o meu rapaz de 15 anos: dah!
Mas para todas as dezenas de milhares de mulheres que foram raptadas e violadas, violadas sob a mira duma arma, violadas em grupo, violadas com objetos afiados, espancadas e violadas, violadas enquanto crianças, violadas por conhecidos – que ainda estão à espera dum mínimo sussurro da justiça – a reação altamente excepcional da Suécia e da Inglaterra a esta situação é uma bofetada na cara.
Parece dizer às a mulheres na Inglaterra e na Suécia que se alguma vez se quiser que alguém leve o crime sexual a sério, se deve assegurar que o homem que acusa do mal por acaso também tenha embaraçado o governo mais poderoso da Terra.
Mantenham Assange na prisão sem fiança até ser interrogado, dê por onde der, se estivermos de repente numa verdadeira epifania mundial feminista sobre a gravidade da questão do crime sexual: mas a Interpol, a Inglaterra e a Suécia devem, se não querem ser culpadas de manipulação detestável para fins políticos cínicos duma questão grave das mulheres, prendam também – de imediato – as centenas de milhar de homens na Inglaterra, na Suécia e pelo mundo fora que são acusados em termos muito menos ambíguos por formas muito mais graves de violência.
Alguém que trabalhe no apoio a mulheres que foram violadas sabe que com esta resposta grosseiramente desproporcional a Inglaterra e a Suécia, seguramente sob pressão dos EUA, estão a usar cinicamente a questão séria da violação como uma folha de parreira para cobrir a questão vergonhosa do conluio global para silenciar a discordância.
Não é o Estado a abraçar o feminismo. É o Estado a afrontar, agredir o feminismo.
*Naomi Wolf é autora do grande êxito editorial «The End of America: Letter of Warning to a Young Patriot»
Extraído do blog Viomundo
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