por Marcelo Carneiro da Cunha no Terra Magazine
Marcelo Carneiro da Cunha: em defesa do mundial no Brasil
Estimados
milhares e milhares de leitores, jogar pra torcida é fácil, jogar pro
time é necessário, jogar bola fica acima e além de tudo isso. E jogar
bola é preciso.
Um treinador inglês falou que não entendia como alguém podia dizer
que o futebol era assunto de vida ou morte. O futebol, dizia ele, era
muito mais do que isso. O futebol é, tem que ser, uma representação da
vida e da sua absoluta importância e inutilidade, e isso ele faz como
nada mais faz, e por isso o amamos tanto.
E agora, nesses tempos de protestos importantes e vandalismos
malucos, vem parte do povo gritar, soprar, berrar contra a Copa no
Brasil.
Estimados leitores: nada mais estúpido, sem noção, sem razão, sem lógica.
Uma Copa do Mundo é uma celebração única do único esporte capaz de
unir o mundo em torno de alguma coisa que todos compreendem e que não
incluem tiros nem bombas. Durante uma Copa do Mundo são todos, mas todos
mesmo, todo mundo com alguma compreensão do que acontece e com ao menos
uma televisão por perto assistindo, vibrando, debatendo, compartilhando
uma mesma coisa. Nada mais é capaz de chegar perto disso. Nada.
Eu lembro da Copa de 2002, a do Japão e Coreia e que a gente ganhou,
apesar daquele topete infernal do Ronaldo. Eu lembro de ler matérias nos
jornais japoneses, chineses, americanos, brasileiros, alemães,
ingleses, e todos eles eram capazes de debater a mesma jogada, com os
mesmos códigos, na mesma linguagem. Não acredito que exista outra ação
humana capaz de produzir essa mesma sintonia e síntese. Nenhuma.
E, dessa vez, pela segunda vez na história, a Copa é aqui.
Na outra, o Brasil era rural, o
presidente era Getúlio, construímos um Maracanã para 200 mil pessoas e
vivemos a maior tragédia brasileira desde que o Brasil existe. Todo
mundo sabe que o Brasil perdeu para o Uruguai, para si mesmo, para o
nosso destino de triste nação disfuncional.
Ali, naquele momento, no gol do Gighia, nasceu o Brasil moderno,
estimados leitores. Ali decidimos que esse canavial, de alguma forma
ainda não bem compreendida, iria dar certo, mesmo que não assim tãaaao
certo. Foi ali, numa Copa.
Em 58, em plena Suécia, começou a nossa afirmação de futuro, e ele
incluía uma forma de ver e jogar futebol que iria mudar o mundo. Em 62,
um Chile destroçado por um horrendo terremoto se afirmou como nação
realizando a sua Copa, de qualquer jeito. Nós fomos lá e fizemos a nossa
parte. Em 70, o serviço se completou, em uma Seleção que não apenas
venceu, mas se tornou um ícone até hoje nos corações e mentes de um
planeta. Aquela Seleção não apenas reunia o maior talento já agregado em
um mesmo lado de um campo de futebol, mas ela era científica, mesmo que
não percebêssemos, acostumados demais com a nossa natureza
terceiro-mundista. Ela se preparou fisicamente como nenhuma outra, foi
ao México para bailar e bailou, e o mundo agradece até hoje.
O Brasil que recebe a Copa de 2014 é o mesmo, e é muito outro. Esse é
um país industrial, mesmo que carregue nas costas, talvez para sempre, o
canavial. Ele é um país onde gastamos bilhões, bilhões, e isso não faz
sequer cócegas no orçamento. Somos um país de 4,6 trilhões no PIB,
sétima economia do mundo, tranqueiras à parte.
É uma pena que a Copa tenha salientado alguns dos maiores defeitos de
nossa construção política. Somos um país ainda propriedade de
oligarquias, que se assanham e salivam diante das belezas de uma copa.
Bilhões na construção de estádios, na construção de avenidas, de metrôs,
de corredores de ônibus, de aeroportos, de sistemas de
telecomunicações. É uma pena. Mas, caros leitores, o mesmo acontece em
todos os lugares, todos. A corrupção não é invenção ou exclusividade
brasileira, mesmo que parte da imprensa nos venda essa ideia.
Por outro lado, a maior parte desses investimentos são mesmo
investimentos, e não inutilidades, como foram os do Pan de 2007, como
serão os da Olimpíada de 2016, isso sim, uma besteira solene, da qual
ninguém ainda falou. Fora os idióticos estádios de Brasília, Cuiabá,
Natal e Manaus, todos os demais serão sim os palcos do nosso novo
futebol, que vai surgir a partir da Copa. Muda o cenário, muda a cena,
estimados leitores. E o nosso ainda era um cenário do velho e carcomido
século 20, com estádios monumentais e ultrapassados. Todos falam da
Bundesliga, sem se dar conta do muito que ela deve a 2006.
A Copa vai ser, na sua vasta maior parte, uma ótima coisa para o
país, no mínimo pela festa. Os gastos são nada, são amendoins, na
realidade da nossa nova economia e tamanho. Manifestantes falam em
bilhões como se soubessem do que estão falando. Eles simplesmente não
sabem o que já gastamos em saúde e educação, e o quanto os gastos da
Copa não fazem sequer cócegas. Não sabem, e tanto não sabem que defendem
estupidezes como ônibus de graça, algo inexistente, porque alguém paga o
almoço, sempre.
É essencial que o Brasil se rebele contra os desperdícios, contra a
burrice de grande parte da classe política, contra senadores e deputados
que chamam a FAB para ir até ali. Que exija transparência nos contratos
dos transportes de que dependemos. Que queiram vaiar a arrogância da
FIFA, com toda e toda a razão.
Mas a Copa, ela, em si, é uma ótima celebração do futebol, da vida,
do mundo, e isso, estimados leitores, com ou sem infra-estrutura, é
coisa que a gente sabe fazer como ninguém, e é exatamente por isso que o
mundo todo está, ou estava, louquinho para vir.
Que a gente recupere a razão, recupere o equilíbrio, e separe o que
é, do que não é. A Copa, ela, em si, é. E por isso, que seja muito bem
vinda, que sejam todos muito bem vindos até aquele que ainda é, até
prova em contrário, o país do futebol.
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