Do Terra Magazine
Bob Fernandes
"As fitas grampeadas, 38 fitas,
ainda que explosivas, são apenas parte dessa história. O grampo é motivo
e consequência. O grampo é, a um só tempo, gerador e espelho da
degradação e da absoluta desproteção a que estão entregue os cidadãos.
Os enredos que antecedem e se completam com a fitalhada grampeada, as
conexões e personagens remetem aos porões do Brasil".
Estas eram as linhas quase iniciais de “Os porões do Brasil”, a
primeira de uma série de oito reportagens que publiquei na revista CartaCapital entre
março de 1999 e abril de 2004. Nestas reportagens, histórias,
documentos, nomes, fatos sobre como agiam no Brasil os Serviços de
Inteligência – de espionagem, em bom português – dos Estados Unidos.
Agiam quase sempre em constante parceria com a Polícia Federal
daqueles tempos, dos anos 90 e dos dois primeiros anos do século XXI.
Tempos em que uma Polícia Federal com baixo orçamento era refém do
dinheiro e do poder de penetração da CIA, DEA, FBI, algumas das muitas
agências dos EUA que então atuavam no país.
Essa primeira reportagem produziu efeitos. O diretor-geral da Polícia
Federal, Vicente Chelotti, foi demitido pelo governo do presidente
Fernando Henrique Cardoso.
Até que a reportagem mostrasse o contrário, supunha-se que existiam
grampos com o teor de conversas do presidente Fernando Henrique.
Conversas grampeadas em meio às negociações com o governo dos EUA para a
compra do sistema de radares para a Amazônia. Negócio de US$ 1,4 bilhão
que produziria um escândalo que se tornou conhecido como "O Caso
Sivam". Conversas grampedas pela PF em consórcio com a CIA.
A reportagem – que à época teve acesso a 12 horas de conversas, o
conteúdo de 38 fitas grampeadas dentro da PF, inclusive na sala do
diretor – mostrou que as tais fitas, que existiram, já não existiam. Por
motivo de economia, naqueles tempos de baixo orçamento da Polícia
Federal, fitas do Caso Sivam haviam sido apagadas; para serem
reutilizadas.
Apagaram as fitas, mas o teor dos diálogos havia sido reconstruído a
partir de anotações dos agentes. E essa era a espada sobre a cabeça do
governo FHC: o que havia nos grampos do Caso Sivam? Provado que já não
existiam vozes, só reconstituições das conversas – em papel – caiu o
diretor da Polícia, que se acreditava ser o guardião das tais fitas.
A apuração para essa reportagem durou um ano e, em meio à
investigação, surgiria o mais importante: numa PF dividida de cima a
baixo, em vários em grupos de poder, atuavam serviços secretos dos
Estados Unidos; em especial a CIA, com ligações no gabinete do diretor, e
a DEA, à época ligada à DRE-PF, a Divisão de Repressão a Entorpecentes.
A ligação da DRE com a DEA, como então reconheceram alguns dos seus
integrantes, dava-se por motivos de ordem prática. Com orçamento
medíocre, para suas operações mais sensíveis ou de maior porte a PF
dependia do socorro, inclusive e principalmente financeiro, da agência
de combate às drogas dos EUA.
Mais grave, o escopo de atuação da CIA. A Central de Inteligência
atuava em "regime de informação compartilhada" com um setor de ponta da
Polícia Federal. Situado no Setor Policial Sul, ao final da Asa Sul, em
Brasília, o Centro de dados Operacionais, CDO.
Base eletrônica, o CDO nasceu como "doação" da CIA, via Departamento
de Estado, ainda no governo José Sarney. Desde os tijolos até a primeira
dezena de carros, outra doação; essa feita via uma base norte-americana
no Paraguai, tudo com o DNA da CIA. A partir daí, essa história começou
a ser contada.
Nos links que se seguem, as 78 páginas das oito reportagens
publicadas entre 3 de março de 1999 e 21 de abril de 2004. Reportagens
nas quais é relatada a desabrida ingerência dos serviços de espionagem
dos EUA e a submissão brasileira à época. Narrativas com documentos,
nomes, histórias, datas, fatos…
Edição 92: Na capa “Os Porões do Brasil”
a reportagem intitulada “Casos de Polícia”. Ali, a história de como o
presidente Fernando Henrique se tornara um refém de supostas fitas do
Caso Sivam. Como as fitas tinham sido apagadas e só existiam
transcrições, já não havia o suposto perigo de conversas apimentadas
ainda existirem.
O diretor da Polícia Federal, Vicente Chelotti, foi demitido dias
depois da publicação da reportagem. E num box, às páginas 28 e 29, essa
história começava a ser contada com o título “O SIVAM, A CIA E OS
TRAPALHÕES”. Mas não apenas. Revelações de como também a DEA operava à
sombra da Polícia Federal.
Edição 97: A 12 de Maio de 99, pouco mais de dois meses depois, a segunda reportagem: “CIA e DEA pintam e bordam no Brasil”.
Na capa, o cartão de visitas do então Chefe da CIA em Brasília, Craig
Peters Osth, que se apresentava como “Conselheiro da Embaixada dos
Estados Unidos da América”.
Disfarce habitual, mas em vão. A
reportagem já tinha a história. O CDO, dentro de instalações da PF, era
uma base operada no regime de “informação compartilhada”. Nessa
reportagem, o roteiro de como a CIA operava no Brasil.
Quem foram os chefes no CDO. Onde, antes, a CIA estava ancorada na
PF. Quais foram, ao menos alguns, os delegados e agentes que, em
Washington, durante treinamento da CIA, submeteram-se aos testes do
detector de mentiras.
A CIA, via CDO, chegara a manter 15 escritórios no Brasil. Enquanto a
reportagem era feita, os escritórios eram quatro: em Brasília, Belém,
Cuiabá e Porto Velho. Um dos chefes da agência no país havia sido
Blocker, seguido por Jimmy e, nos tempestuosos dias do SIVAM, Bramson
Brian.
Na reportagem, internamente intitulada “Mundo das Sombras”,
entrevista com Craig Peters Osth que, candidamente, negou ser o chefe da
CIA. Inútil. Não havia “Conselheiro” estrangeiro em Brasília que não
conhecesse o chefe da CIA.
O CDO, divulgada escancaradamente sua existência e DNA, mudaria de nome. Se tornaria o SOIP. Com a continuidade dos relatos seria chamado de COIE.
O CDO, divulgada escancaradamente sua existência e DNA, mudaria de nome. Se tornaria o SOIP. Com a continuidade dos relatos seria chamado de COIE.
Edição 98: Duas semanas depois, a 26 de maio, a
terceira reportagem de capa. Nesta, o então Chefe da Missão
Diplomática, o titular da representação naquele momento em que o cargo
de embaixador estava vago, surgia bradando: “Temos o dinheiro, as regras são nossas”.
Palavras de Jame
Derham. Craig Peters Osth, entrevistado na reportagem anterior, em
seguida havia sido chamado de volta aos Estados Unidos. Queixumes
chegaram ao Palácio do Planalto. Numa festa, entre embaixadores, James
Derham desabafou:
- Quem manda é quem tem dinheiro, e quem tem dinheiro somos nós. A
gente se vincular à Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) para combater
as drogas é uma bobagem. O Brasil não tem dinheiro para isso.
Donde, o título interno da reportagem: “Bwana não góstar”.
Derham atacou também o chefe da Senad, Wálter Maierovitch:
- Esse juiz não vai fazer nada porque a secretaria não tem dinheiro. Nós temos o dinheiro, as regras são nossas.
Maierovitch, à época, depois de dura interpelação pediu ainda que
Mister Derham deixasse o Palácio do Planalto, onde se dera o entrevero.
Em documento protocolado, o chefe da Senad relatou o fato ao general
Alberto Cardoso, chefe da Casa Militar.
À reportagem, Maierovitch diria:
- Todos os agentes da CIA e da DEA devem apresentar-se à Senad. Não
tenho como comprovar se agem irregularmente ou não. Cooperação, sim.
Invasão de soberania e cooptação, não.
Por opor-se às tese e ações dos serviços secretos e do governo dos
EUA quanto ao combate às drogas e espionagens, Wálter Maierovitch seria
derrubado da Senad mais adiante. Sem o apoio do presidente Fernando
Henrique, que não queria embaraços na sua relação com o presidente Bill
Clinton.
Edição 122: Quase um ano depois, a 10 de Maio de 2000, uma longa entrevista:“Um Espião Abre a Boca”.
Um brasileiro, contratado pela DEA como informante – o que era e é
ilegal – revelou com detalhes, em 10 páginas, como a Drug Enforcement
Administration , a DEA, operava à margem da lei no Brasil.
“Amadeu”, codinome, descreveu a relação de subserviência que a
Polícia Federal então mantinha com a DEA. Entregou nomes, documentos,
datas, histórias, esmiuçou como a agência contratava dezenas de
informantes- sem poder fazê-lo-, como pagava as contas da PF, quem eram
os chefes…
Getúlio Bezerra, então chefe da DRE, em entrevista, admitiu: “Ideal seria não depender”. Mas dependiam.
Edição 185: As provas seriam exibidas quase dois anos depois, na edição de 17 de abril de 2002, cuja capa informava: “A Prova: como os EUA pagam contas da Polícia Federal”.
Na reportagem intitulada “Relações Carnais”, as provas de tudo que
havia sido relevado naqueles anos. Via contas CC-5, a embaixada dos EUA
depositava dinheiro nas contas de delegados da Polícia Federal.
Dinheiro para pagar operações, entre os anos de 1996 e 1999, quando
CIA e DEA atuavam desabridamente dentro da PF. Naquele período,
pagamentos de R$ 2 milhões. O dinheiro entrava via CC-5 e Citibank.
Novamente entrevistado, Getúlio Bezerra, o chefe da DRE da PF,
admitiu: há quase 20 anos a DEA depositava dinheiro para operações em
contas nominais de delegados da PF. Disse ainda:
- A gente não é soberbo que não possa receber, e não estamos limitados a isso. Temos certa independência.
Edição 283: Mais dois anos, 24 de Março de
2004. Em 17 páginas de entrevista, o homem que deixava a chefia do FBI
no Brasil contou tudo. O escritório do FBI era oficial, nada
clandestino. Mas as informações de Carlos Costa eram explosivas. Título
na capa: "Os EUA grampearam o Alvorada".
Carlos Costa, então um dos 39 chefes do FBI espalhados pelo mundo e,
portanto, com acesso a documentos reservados no mais alto grau,
revelava:
- Documento secreto algum falava em armas de destruição em massa,
Bush e Blair queriam a guerra… Jamais li documento secreto que indicasse
a existência de armas de destruição em massa no Iraque. O que li
assegurava o contrário… Rumsfeld esteve com Saddam em 20 de dezembro de
82, entregamos a ele (Saddam) as técnicas do Antraz.
Mas muito mais Carlos Costa contou sobre o Brasil, referindo-se aos
anos 90 e início dos anos 2000. Admitiu que serviços secretos dos EUA
haviam grampeado o Itamaraty e Palácio da Alvorada. Disse, com todas as
letras: “A Vossa Polícia Federal é nossa, trabalha para nós a anos (…)
Foi comprada por alguns milhões de dólares”.
Afirmou também que existiam programas para “influenciar” a imprensa, a
mídia. E o que seria “influenciar”? Comprar, se necessário? Resposta:
- Seja lá o que for necessário. Virar a opinião pública a nosso favor.
Costa contou também como se forçava a barra, como havia uma “obsessão” em relação a Tríplice Fronteira e o terrorismo:
- Aquilo ali é um lugar que por si só é fora da lei… terroristas
nunca foram detectados, e investigamos muito, até porque o Brasil
perguntou a nós: “Vocês sabem onde estão os terroristas?”. O que tem é
muita retórica…
Informou ainda Carlos Costa:
- Há quem envie dinheiro para o Hezbollah desde o Brasil, da Tríplice
Fronteira? É certo que há, mas o Hezbollah é um partido político legal
que tem seu braço armado, terrorista. Bem, em Detroit, em New York, nós
temos cidadãos americanos que mandam dinheiro para o Hezbollah, para
orfanatos, hospitais, mas o destino final é tão incerto quando parte do
dinheiro do Brasil…
O objetivo era claro. Os Estados Unidos, no vácuo do 11 de setembro,
aproveitavam para forçar a criação de uma ampla base de Inteligência no
Cone Sul.
Ao longo das 17 páginas, o chefe do FBI no Brasil revelou:
- O FBI ordenou, depois do 11 de setembro, mas me recusei a
“monitorar” (grampear) mesquitas, xeques e líderes muçulmanos no Brasil.
Carlos Costa se recusou, mas o fato é que o FBI ordenou espionagem ilegal no Brasil.
Edição 284: Na edição seguinte, de 31 de março de 2004, “A Lista dos Espiões Americanos no Brasil”. O “Conselheiro de Assuntos Regionais", Jack. G. Ferraro, era na verdade o chefe da CIA, lotado na embaixada em Brasília.
Thomas Harold Lloyd, o “Primeiro Secretário”, era da NAS e Mark
Kenyon Edmondson, “Adido para Combate às Drogas”, era da DEA, assim como
fora Pat Healy à época das primeiras reportagens, em 1999.
O sucessor de Carlos Costa no FBI foi Donald Gleg, e o “Adido” Julio Velez era o homem da US Customs…
Edição 287: Em 21 de abril daquele mesmo 2004, a última daquela série de reportagens: “Dois Delegados da PF Revelam a História da CIA no Brasil”.
Ao longo de 10 páginas, os delegados José Roberto Pereira e Rômulo
Berrêdo não apenas confirmam tudo o que havia sido publicado nos cinco
anos anteriores. José Roberto, que dentro da PF enfrentara a CIA ainda
em 1997, revela em detalhes a dimensão da ingerência dos EUA. E da
submissão do Brasil.
Em meio a um relato coalhado de informações e minúcias, o delegado diz com todas as palavras:
- Uma elite dentro da Polícia Federal trabalhava para a CIA e se orgulhava disso (…) Todo mundo sabia. Não concordávamos…
- O presidente Fernando Henrique sabia que tinha falado e temia, pois não sabia que a fita não estava mais gravada…
O delegado Rômulo Fish de Bêrredo Menezes havia sido Corregedor na
Polícia Federal. Num relatório radiografou a promiscuidade entre a PP e a
CIA, desde 1988, e afirmou:
- O CDO (CIA) gasta dinheiro dos EUA e, do meu ponto de vista, não existe um acordo legal. Isso é muito grave…
- O CDO, hoje COIE, (neste 2013 abriga a DAT, Divisão Antiterrorismo)
foi construído com dinheiro americano e isso está no meu relatório…
todos se dizem “Adidos” e “Conselheiros”…
Disse ainda o delegado Bêrredo em relação ao diretor da PF à época da entrevista, Paulo Lacerda:
- Paulo Lacerda, eu, pessoalmente, o tenho em altíssima consideração.
Ele herdou isso, uma coisa que vem desde 1988, não é simples de
resolver, mas eu sei que ele vai tentar resolver da melhor forma…
Na gestão de Paulo Lacerda, que tinha Márcio Thomaz Bastos como
ministro da Justiça, o orçamento da Polícia Federal multiplicou-se.
Tempos de mais de 5 mil operações contra crimes do colarinho branco, de
portas fechadas para operações ilegais de serviços estrangeiros; ao
menos de operações ilegais em consórcio e com beneplácito da Polícia do
Estado.
Exemplo: numa dessas operações o então primeiro-ministro da França,
Dominique de Villepin, enviou um Hércules C-130 para o Amazonas.
Desembarcados em Manaus, onze agentes do serviço secreto da França, à
frente o terceiro homem na hierarquia de Villepin, o diplomata Pierre
Henri Guignard. A missão secreta era executar uma operação de resgate na
selva brasileira, tendo como base o município de São Paulo de Olivença.
Operação de resgate da senadora franco-colombiana Íngrid Betancourt,
amiga de Villepin, então prisioneira das FARC. Operação de resgate que
deveria se dar em território brasileiro.
No domingo, 13 de julho de 2003, descoberta a operação secreta, o
Hércules C-130 e os agentes secretos franceses receberam um “convite” do
governo brasileiro: tinham que deixar o país imediatamente. E assim foi
feito, apressada e pontualmente às 13 horas.
Também o “convite” para deixar o Brasil imediatamente foi reservado.
Essa história começaria a ser contada uma semana depois. Mas essa é
outra história desse mundo de espiões e espionagem.
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