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domingo, 7 de fevereiro de 2010

Leia mais uma análise do filme Lula, o Filho do Brasil.


 O filme que nós estamos fazendo


Ivana Bentes

Vi finalmente “Lula o Filho do Brasil”. A biografia do presidente do Brasil pedia, no mínimo, um filme como Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, que entrou para a história do cinema mundial ao contar de forma surpreendente a saga de uma família nordestina. Lula, o filme, poderá entrar (no máximo) para a história das bilheterias (o que já será um feito).

No início da sessão lotada, no Roxy de Copacabana, no Rio, os espectadores se irritaram com a interminável lista inicial de patrocinadores (o filme avisa que não teve patrocínio público) e alguém gritou: “o ingresso é caro e está saindo do meu bolso!”

Mas a comparação com Vidas Secas é meramente retórica e “fora de lugar”. Vidas Secas é um filme sobre o fracasso das vidas severinas, presas em um inferno seco, no limite entre humanidade/animalidade e nesse sentido não poderia inspirar a saga de um sobrevivente-vencedor, capaz de transformar as forças mais hostis num impulso vital.

Vidas Secas é um filme árido, de uma violência surda, fotografado por Luis Carlos Barreto produtor do filme Lula, de Fábio Barreto. Um marco do Cinema Novo e de uma mudança estética e política, traz uma violência subjetiva sem cair numa forma mais que desgastada e conhecida.

Não vale a comparação. Mas fica a questão. Como traduzir, expressar cinematograficamente, a inovação política do governo Lula, suas contradições, limites e impasses, esteticamente?

Obviamente o filme de Fábio Barreto não se propõe a nada disso, aliás haveria “uma” estética Lula? Certamente não. Ainda mais que o filme acaba onde estamos, no olho do furacão e das mudanças políticas pós-Lula e as vésperas de uma eleição para presidente da República.

Mesmo assim, a opção do filme é pobre, pois transforma a trajetória de Lula numa espécie de novela das seis. A questão não é nem o gênero escolhido, drama ou melodrama. O melodrama é poderoso como forma cinematográfica. O cinema hollywoodiano, mexicano, alemão fizeram obras-primas no gênero.

O problema é que o filme de Fábio Barreto é sutil como a prensa que corta o dedo do futuro presidente! Vai “montando” fatos na sua linha de montagem audiovisual. Alguns comoventes, como o início, outros que passam batido, cumprimento burocrático de uma cronologia/biografia.

Vai enfileirando fatos que são, por si só, mesmo lidos numa folha de papel, dramáticos: fome e miséria no Nordeste, abandono, alcoolismo e violência do pai, perda do dedo no torno mecânico, morte da primeira mulher e do primeiro filho, segundo casamento, enfrentamento da ditadura, prisão nas greves do ABC, morte da mãe, eleições perdidas, presidente da República.

Para encadear esses fatos um fio condutor: a mãe dona Lindu, que encarna a força, a superação, a teimosia do povo brasileiro mais humilde. Lula é “apenas” isso, o filho dileto dessa mãe-coragem, tornada mítica também.

Mas e o personagem Lula? Lula-herói na sua saga de menino pobre é esvaziado de qualquer dimensão política. O filme dá a impressão que virou gente e presidente para agradar a mãe. Toda sua entrada no sindicato é “neutralizada” como intenção política. Lula é “desligado” de política, acha sindicato inútil, greve “baderna” e “confusão”, em todas as oportunidades o filme reforça a despolitização de Lula, o que é um feito!

É mostrado como um sindicalista vacilante que, seguindo os conselhos da mãe Lindu, torna-se um negociador cauteloso para quem “os patrões não são nossos inimigos, afinal pagam o nosso salário”. É é pensando na mãe que encerra uma das greves do ABC paulista!

Ou seja, toda a inteligência política de Lula como articulador, negociador, a transformação de uma greve por salário em uma greve contra a ditadura militar, o Lula estrategista, é esvaziada.

É como se a intencionalidade política ou o pensamento radical entrassem em confronto com o desejo de “mitificação”, maculasse o mito, que precisa ser esvaziado justamente daquilo que o constitui em nome de uma “predestinação" (o desejo intenso da mãe de que seja “alguém”, bom filho, bom marido, torneiro mecânico, sindicalista, nem precisa ser “alguém falado”). Lula, no filme, não toma sua vida nas mãos, vai se tornando alguém simplesmente por acaso (ver César Migliorin, em “Lula, um herói por acaso”).

O fato é que as políticas sociais de Lula mais radicais que a elite rejeita (cotas, Bolsa Família, etc.) não serão melhor aceitas porque Lula era o filho dileto de Dona Lindu! Ou seja, o filme sequer funciona como propaganda política!

E haverá claro os que vão acusar e denunciar a “degradação” do mito! Sem os conselhos de Dona Lindu, o Lula “real”, finalmente político, que para governar suja as mãos, este, poderá ser execrado. O problema das “santificações” é que elas abrem caminho para a destruição igualmente violenta do mito! Esse é o processo midiático recorrente na sua bipolaridade esquizo.

Essa operação de esvaziamento do político vem sendo feita em muitos filmes brasileiros com ícones da esquerda. Olga, filme de Jaime Monjardim, Cazuza, de Sandra Werneck, ao fundirem o imaginário rebelde com a estética noveleira de certa higienização, romantização, glamourização, despolitização.

Pois, como é possível (no caso de Olga) fazer um filme sobre líderes comunistas sem falar a palavra “comunismo”, ou fazer um filme sobre um contestador dos costumes como Cazuza sem a palavra homossexualismo? Ou transformar Che Guevara (O “Che” de Walter Salles, um filme cinematograficamente melhor que todos esses) numa espécie de piedosa e inofensiva Madre Tereza de Calcutá?

Como esse cinema aproximaria qualquer jovem de um imaginário de contestação e rebeldia, de desejo de transformação, se não restitui as ambiguidades, contradições, impasses, porosidades, desacertos, vazios que forjaram as vidas e biografias de seus personagens?

Há uma cena particularmente constrangedora no filme, o merchandising da cerveja Brahma, em que os sindicalistas do ABC são transformados em guerreiros “brameiros”!!

Resumindo, poderíamos dizer que “Lula o filho do Brasil” não é marcante como cinema, é fraco como publicidade política, e ótimo como novelão das seis e para vender Brahma!

Agora o filme é o maior institucional de todos os tempos do SENAI. O imaginário do torneiro mecânico que moldou a cabeça do Lula fordista do ABC. O amor ao macacão/uniforme da fábrica, a carteira de trabalho assinada, o trabalho e o emprego como sonhos maiores de qualquer brasileiro. O ideário desenvolvimentista e do pleno emprego que sabemos não dá mais conta dos desafios de um capitalismo do precariado global.

Fora do cinema, Lula teve que encarar essas mudanças radicais: do ideário nacional-soberanista-desenvolvimentista para o mundo pós-fordista, da co-dependência, de um país imerso em um capitalismo mundial integrado, exigindo uma transformação política-existencial-cognitiva, que deixa a direita e a esquerda baratinada, ressentida, perdida.

Como Lula ousou se arriscar tanto e sustentar, com todos os desgastes e equívocos cometidos, a aposta num devir outro do país?

Apesar de tudo, vendo o filme, balancei. Porquê o filme mesmo “descafeínado” nos conecta com um afeto e um "fora" radical. As mudanças que esse país passou, os avanços nas políticas sociais, os projetos inovadores no campo da cultura, o entendimento do país, visto de “baixo”, o transe das alianças e as tentativas recorrentes de desacreditar e esvaziar a dimensão política da nossa existência. Quando essa inteligência política popular brasileira, é o filme que nós, os brasileiros, estamos construindo e que nós eleitores podemos dirigir.

*Ivana Bentes é professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRJ, pesquisadora do CNPQ e diretora da Escola de Comunicação da UFR

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