O que aprendi na polêmica do PNDH
Definiu um leitor do Nassif que "a montanha pariu um rato". Seria uma boa imagem se, depois de tantos litros de tinta, tantas páginas de jornal, tantos minutos em emissoras de rádio e televisão dedicados à polêmica do Plano Nacional de Direitos Humanos não extraíssemos absolutamente nada.
Não foi o caso. Podemos dizer que a polêmica pariu uma tremenda discussão sobre Direitos Humanos e renovou o ímpeto daqueles que lutam para aprofundar a democracia brasileira e fazer valer direitos não apenas aos latifundiários da terra e do espaço eletromagnético. Um leitor do Viomundo -- a quem peço perdão antecipado por não ter anotado o nome -- apontou o nexo entre esses dois grupos por trás da polêmica.
Não é por acaso que, do lado de lá, sustentando a teoria doidivanas de que o PNDH representa algum tipo de "cobertura" a um "golpe autoritário" no Brasil, estavam os editorialistas da Folha, do Estadão, as páginas da revista Veja, o Ali Kamel, o Boris Casoy apud Ives Gandra Martins, a Confederação Nacional da Agricultura (da Kátia Abreu), a OAB paulista (a mesma do "Cansei"), setores conservadores da Igreja, o José Nêumanne, o Alexandre Garcia e uma infinidade de outros personagens menores.
O leitor Gustavo Paim Pamplona disse, em comentário, que o terremoto no Haiti -- e as trágicas mortes de Zilda Arns e dos militares brasileiros -- acabou abortando a primeira grande "crise" de 2010, que na verdade é mais uma de muitas. Quem é leitor do site acompanhou conosco o caos aéreo, a epidemia inexistente de febre amarela e a devastação da gripe suína, em que alguns ingredientes que vimos agora já estavam presentes: a desinformação acoplada a um discurso apocalíptico dos adversários do governo Lula.
Já dava para notar para onde caminharia a "crise", não fosse pelo infortúnio caribenho: iria bater às portas da Casa Civil e de Dilma Rousseff.
Há quem diga que foi tudo tramado por José Serra ou assessores dele: a crise perfeita. Presidente da República em férias, a musa da febre amarela vaza um relatório que ainda não tinha chegado ao Ministério da Defesa dando conta de que a FAB montou uma espécie de pódium aeronáutico com medalhinha de ouro para o jato sueco, medalhinha de prata para o jato americano e medalhinha de bronze para o jato francês, justamente o preferido do presidente da República.
Some-se a isso o descontentamento militar com detalhes do Plano Nacional dos Direitos Humanos, especificamente com o estabelecimento de uma comissão da verdade para apurar os crimes cometidos pela "repressão política" durante o regime militar. Eram esses os ingredientes do caldo cozido no fogo da mídia.
Resisto em acreditar em maquinações que requeiram a articulação de mais de meia dúzia de pessoas. Mas o "modo de operação" é razoavelmente conhecido: os jornais repercutem as notícias uns dos outros, que ganham perna nos telejornais e... vira uma bola de neve, especialmente atraente num ciclo de poucas notícias.
Vi isso ao vivo, nos tempos em que eu era repórter da TV Globo: sai na Veja, ganha pernas no Jornal Nacional de sábado, sai nos jornalões de domingo e segunda-feira tem "crise". Ou seja, é uma fórmula um tanto desgastada.
É importante considerar, nesse caso, que em um negócio bilionário como a compra de caças há sempre muito dinheiro de lobistas. Não é por acaso que tanto na Folha quanto no Estadão -- este em editorial -- se falou que a solução era "adiar" o negócio. A quem interessa "adiar"? A Washington, com certeza: os Estados Unidos não querem que o Brasil feche uma parceria estratégica com a França, injetando europeus militarmente no Hemisfério Sul, porque com isso perdem poder e dinheiro. Muito dinheiro.
É inegável que algum desconforto militar houve com o PNDH. Não no tom descrito pela musa da febre amarela, segundo o qual os militares temiam a "depredação" de instalações militares. Ela disse que os militares "imaginam que o resultado dessas propostas seja a depredação ou até a invasão de instalações militares que supostamente tenham abrigado atos de tortura e não admitem o constrangimento da retirada de nomes de altos oficiais de avenidas pelo país afora".
Era só o que faltava para o repertório de piadas brasileiras: sequestro relâmpago de tanque de guerra pelo MR8.
Que a jornalista tenha tido a coragem de escrever isso, mesmo atribuindo a uma fonte, no pé de uma reportagem sobre a crise -- uma das primeiras -- diz muito da qualidade da mídia brasileira, em que jornalistas são guiados, quando não cavalgados, pelas fontes.
Tem a má fé e tem a desinformação, o despreparo, a preguiça mental de repórteres e editores. Em tempos de internet, os PNDHs I, II e III estavam lá o tempo todo, para quem quisesse ler e entender. O próprio Viomundo foi um dos primeiros a falar disso, depois de ver no Paulo Henrique Amorim um vídeo com a votação em que a proposta para formar a Comissão da Verdade foi aprovada por 26 votos contra dois de representantes do Ministério da Defesa, na conferência nacional de Direitos Humanos de 2008, que rascunhou o PNDH III.
Foram dias até a mídia chegar -- graças à rádio CBN -- ao Paulo Sergio Pinheiro, organizador do PNDH II, que esclareceu o nexo entre a Conferência de Viena e o PNDH I, em 1996. O Brasil, junto com a Austrália, é que propôs o conceito dos planos nacionais. Há repórteres que até agora não entenderam o caráter meramente propositivo do plano, de definir diretrizes gerais. O fato de que o PNDH resulta de um decreto presidencial não o torna lei. Cada um daqueles pontos do plano, para se tornar lei, terá de fazer todo o trâmite legislativo no Congresso Nacional.
A falta desse entendimento ou a má fé -- é difícil dizer quando é preguiça e quando é malícia -- resultou em abordagens inacreditáveis, como a já famosa reportagem do Jornal da Band que junta tudo o que pode haver de pior no Jornalismo: deveria ser gravada e mostrada nas salas de aula pelos professores como exemplo de como não fazer.
Para uma aula nas sutilezas manipulativas do Ali Kamel, recomendo essa aqui. Também não é novidade. O Rodrigo Vianna foi o primeiro a denunciar isso e as provas, evidências e testemunhos só fazem crescer, como registra quase diariamente o Marco Aurélio Mello.
E tem também a grosseria pura e simples, em rede nacional de TV.
Esses três momentos da TV brasileira são a justificativa para a Conferência Nacional de Comunicação recém-realizada. Ajudam a explicar porque alguns empresários do setor evitaram a conferência: eles querem ter o direito eterno de usar um bem público do qual são concessionários para mentir, forjar, deturpar e distorcer informações, sem dar qualquer satisfação à sociedade.
Ao constatar isso, há quem queira reviver no Brasil de hoje os anos 60, trazendo de volta os antigos e mal resolvidos embates ideológicos. Há, aliás, um bom artigo do Rodrigo Vianna sobre o momento que vivemos.
Mas, francamente, acho contraproducente trazer de volta as memórias da rua Maria Antonia [quando os direitistas do Mackenzie enfrentavam os esquerdistas da Faculdade de Filosofia da USP], que pertencem a outro tempo. Há que se investigar o passado, punir os criminosos que cometeram seus crimes em nome e em defesa de um regime ilegítimo. Ponto.
De outra parte, se algumas centenas de brasileiros se engajarem na defesa dos princípios expressos no PNDH, a "crise militar" terá valido a pena. E a contribuição de todos vocês, que ajudaram a disseminar informação a respeito, foi e continua sendo valiosa. É um assunto muito importante para ficar nas mãos de poucos em Brasília.
Mais uma vez ficou provado que a mídia tem poder -- mas bem menos do que imagina. Eu diria até que cada vez menos aquele grupinho de editores do eixo Rio-Brasília-São Paulo pode manobrar a opinião pública. Das dezenas de reparos feitos ao PNDH, houve apenas uma "correção", acordada entre os ministros do governo Lula, muito embora há quem diga que a pequena mudança descaracterize o essencial, abrindo a possibilidade de equiparar torturadores aos que pegaram em armas contra o regime militar. A ver.
Mas é bom prestar atenção em duas coisas que a "crise do PNDH" deixou claro: dessa vez, o caldo da mídia foi engrossado por algumas organizações -- CNA, OAB-SP, setores da igreja, setores militares, a extrema-direita -- que ensaiaram uma coalizão conservadora que não havia mostrado o rosto em situações anteriores.
É importante que aqueles que se dizem de esquerda não contribuam com o crescimento e o fortalecimento dessa coalizão, com palavras e atos doidivanas. Na História brasileira, como destacou o Rodrigo Vianna, o PSD [antigo partido político, que ficava sempre entre a UDN e o PTB, uma espécie de centro político, hoje ocupado pelo PMDB] é o pêndulo: quem perde o centro, perde o poder. Quem perde a razão, também.
Leiam o livro "1964 -- A Conquista do Estado". Vale a pena.
As manifestações mais hidrófobas que vimos durante a "crise militar" mostram que os conservadores brasileiros estão perdendo a razão. Eles dispõem dos meios para propagar suas mensagens. Dispõem do oportunismo político de alguns. E dispõem de uma fatia da classe média urbana brasileira, pequena, que está absolutamente convencida de que tem um chavista no ralo do banheiro -- e a culpa é do Lula. Tenho uma vizinha, telespectadora assídua do JN, que está ameaçando o cãozinho de estimação com o grito: "Cuidado, o Vanucchi vem te pegar".
Disseminar informação de qualidade e um debate franco e honesto é a melhor forma de evitar o inchaço da legião de celerados. Descomprimir a imensa panela de pressão que é um país injusto como o Brasil requer paciência e cuidado, especialmente quando mudanças rápidas colocam em xeque um modelo concentrador de renda, de terra e de poder. Nesse contexto, Direitos Humanos representam uma ameaça por serem exatamente o que são: universais.
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