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domingo, 24 de janeiro de 2010

Francisco Viana : hoje, a inclusão está vencendo. O conservadorismo está sendo ultrapassado.


Um caso para se olhar com atenção

Francisco Viana
De Salvador (BA)

Há na Bahia um caso de comunicação que merece reflexão e, mais do que isso, tomada de posição. Desde o início do governo de Jaques Wagner (PT), o Secretário de Cultura, Márcio Meirelles, diretor teatral nacionalmente respeitado, vem sofrendo duras críticas de parte da intelectualidade baiana e, como desdobramento, de parte da imprensa baiana. À primeira vista, Meirelles é um criador de caso. Na prática, não é nada disso. Meirelles tem personalidade, tem um propósito modernizante e capacidade de realização. Basta se analisar o que ele está levando à prática para constatar o óbvio: está sendo criticado pelas suas virtudes, não pelos seus defeitos.

O que fez Meirelles? Defendeu a tese de que a cultura é direito do cidadão, uma questão de Estado e não ficou nas palavras. Onde antes predominava uma política de privilégios, centralizada em Salvador e em algumas instituições não governamentais, passou a vicejar uma política de democratização e descentralização das ações públicas. Com isso fortaleceu a participação da sociedade civil, em seu conjunto, na produção cultural, fomentou atividades culturais não apenas em Salvador, mas na Bahia inteira e institucionalizou as relações entre os artistas e o Estado.

Resultado, o Fundo de Cultura evoluiu do financiamento de 274 projetos para 1.143. Há mais e mais gente indo ao teatro, muitos pela primeira vez, o carnaval do Pelourinho ganhou nova dimensão, a cultura do interior está sendo resgatado, o diálogo do Estado com os municípios e o governo federal vem refletindo o êxito de um pacto federativo que coloque cada um dos agentes públicos nos seus devidos lugares. E o dinheiro público está sendo gasto com zelo. Tudo isso deveria ser reconhecido pelas pessoas que produzem cultura. Mas, a realidade é que a mudança atingiu interesses cristalizados durante o carlismo e as reações reverberam com o vitríolo da crítica pessoal.

Ingênuos ou não, os opositores não conseguem aquilatar a dimensão da mudança que está acontecendo na Bahia. Lembram o triste personagem de Henrique II, de Shakespeare, que foi tragado pela sua incapacidade de exercer o poder. O defeito de Henrique II é que não sabia ouvir a voz das ruas, ignorava os bons conselhos do povo. Faltava a ele talento político. Meirelles, por sua vez, movimenta-se como Henrique V, também personagem de Shakespeare. Como Henrique V, sabe ouvir a voz das ruas, tem liderança, é um homem do seu tempo. Tanto que com fatos tem vencido resistências na mídia. Tornando visível o que vem realizando. O caso em questão traz a cena uma pergunta chave da atualidade: como fazer a comunicação num ambiente conservador em que os fatos são torcidos em função de interesses, não da realidade concreta?

Por realidade concreta, entenda-se os fatos com os seus nexos históricos. A Bahia é uma sociedade singular: libertária nos costumes, conservadora na política. No alvorecer da República, alinhou-se com o império. Era monarquista e assim permaneceu, mesmo quando aderiu ao republicanismo. Na década de 30, ergueu a voz contra Getúlio e chegou a ensaiar uma aliança com os paulistas na chamada Revolução Constitucionalista de 1932. Quando estourou a revolta, as elites baianas preferiram ficar em silêncio. Não pegaram em armas. Mas, Getúlio acabou intervindo na Bahia e foi quando o tenente Juracy Magalhães criou a sua própria dinastia, também conservadora. E veio 1964. As elites não titubearam: deram as mãos aos militares e com eles ficaram de mãos entrelaçadas. O carlismo é filho dessa aliança.

Em todos os momentos, porém, prevaleceu o liberalismo comportamental. Antonio Carlos Magalhães conseguiu fazer da Bahia uma espécie de éden nacional nos anos de chumbo da Ditadura Medici. E, como no pós levante comunista de 1935, a esquerda bateu em retirada, parte da esquerda. O seu extermínio foi seletivo. Lamarca foi assassinado no sertão da Bahia. Grassou a tortura. Tudo se passou como se existisse um mundo paralelo. O mito da liberalidade comportamental não foi arranhado. Pelo contrário, foi incentivado, enquanto as desigualdades cresciam e a política clientelista grassava por toda parte, corroendo por dentro todo o aparelho de Estado. Foi uma época de cooptação em massa de empresários, artistas, políticos, jornalistas. A árvore dos privilégios tornou-se frondosa. A comunicação alienante, por ser fantasiosa, predominou. O éden estava inundado de cinzas, mas o que se alimentava era a visão do paraíso terrestre. Manipulada a publicidade e a informação, criou-se a sensação de uma opinião pública favorável.

A demolição do carlismo foi ensaiada como a eleição de Waldir Pires, ainda na década de 80, mas só se concretizou com Wagner. E, nesse momento, é que a realidade das mudanças começaram se impor. Mais do que baiano, é um fenômeno nacional. Há uma emergência das classes populares, há uma crescente transparência dos gastos públicos, há uma marcha efetiva da democratização dos investimentos públicos. O velho Brasil está sendo ultrapassado. Um novo Brasil está nascendo. Um segmento da intelectualidade tem reagido. Quem lê os jornais pode verificar facilmente que a reação ao governo Lula está na ordem do dia nos escritos de muita gente que tem uma história de esquerda e que se proclama democrata convicto. Lula faz a coisa certa: ignora as reações, realiza. Não entra em polêmicas, apresenta fatos. Fala com os jornalistas, mas fala também direto com a sociedade. É uma comunicação objetiva, inteligente. Desqualifica os seus críticos sistemáticos.

O que é a democracia? Para esses epígonos, conscientes ou não do Brasil do passado, é a tradicional democracia sem povo. Uma democracia crassa. Na Bahia a questão parece ser mais delicada porque nada indica que estejam em jogo questões ideológicas. O problema é mais objetivo: os privilégios que, junto com filhos não pródigos de Henrique II, deixam o palco. Certamente, o caminho correto de uma boa comunicação nesses casos é ignorar os que lutam por privilégios. Responder ao que existe de critica real, objetiva, concreta. Deixar que as viúvas dos privilégios, falem e se cansem de falar.

As ações de governo, quando legitimas, são portadoras de vasta significação para a opinião pública. Mais uma vez o caso de Lula é emblemático: ele é aplaudido no exterior, criticado sistematicamente por uma parte da intelectualidade midiática. A sociedade não se deixa enganar. Prova disso, são as elevados índices de popularidade do presidente. Caetano Veloso sintetizou essa oposição crassa ao dizer que o presidente era analfabeto. Creio, toda pessoa de bom senso gostaria de ser "analfabeto" como o presidente, hoje um político de projeção e reconhecimento mundial. Creio, também que essas pessoas de bom senso sabem que o analfabetismo é uma responsabilidade da sociedade brasileira, não um demérito. Ou seja, é alienante imaginar que se pode criticar alguém com o argumento do analfabetismo. Mera opinião. Com tal, fruto de um exercício narcísico. Isto para usar um termo elegante.

Em Shakespeare não há claramente o conceito de opinião publica, opinião geral, espírito publico. São temas que flutuam nas suas peças, revestidas de sensível percepção do humano, mas que foram entronizados no cotidiano pela Revolução Francesa. Entre nós, estamos assistindo agora uma emergência concreta do papel da opinião pública, da opinião geral e do espírito público. Pela vivência prática, a sociedade está evoluindo para o saber público e isto significa que não se deixa enganar por palavras. Sabe quem são os lobos que se vestem na pele de cordeiro. O que de construtivo e estruturante está acontecendo na cultura baiana e em outros campos da vida do Estado logo vai se tornar visível. Exatamente como está se tornando visível a semeadura e as colheitas feitas pelo governo Lula. Nem Lula nem Wagner podem ser compreendidos fora do processo histórico. E a história do Brasil tem sido a da luta entre a exclusão e a inclusão. Em 1964, perdeu a inclusão. A opção brasileira não era a democracia ou o comunismo, a democracia ou uma república sindicalista. O que estava em jogo: era a maior ou menor inclusão social. Hoje, a inclusão está vencendo. O conservadorismo está sendo ultrapassado.

Em suma, a questão que me parece atual é exatamente esta: o que é a comunicação numa democracia autêntica? Como lidar com os conflitos? Como fazer preponderar à concretude dos fatos? Como eles são manipulados? A imprensa, se não quiser ingenuamente servir ao conservadorismo, precisa questionar onde começa a velha doutrina de recorrer ao conceito de democracia para sufocar a democracia e o que é realmente a crítica real, alicerçada em fatos reais, esta sim, o oxigênio do processo democrático. São questões para se olhar muito de perto. São questões que, ao serem respondidas, em muito irão contribuir para se deixar o Brasil velho no lugar de onde ele nunca deverá sair: a lixeira da história.

Francisco Viana é jornalista, consultor de empresas e autor do livro Hermes, a divina arte da comunicação. É diretor da Consultoria Hermes Comunicação estratégica (e-mail: viana@hermescomunicacao.com.br)


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