Ceará: nos campos da seca
No início do século 20, no Ceará, os poderes públicos estadual e federal criaram campos de concentração para evitar que flagelados famintos fugindo do sertão semi-árido chegassem a Fortaleza
por Xico Sá
"E você tem visto muito horror no campo de concentração?”, pergunta o sertanejo Vicente a Conceição, personagens do romance O Quinze, da escritora Rachel de Queiroz. Os dois conversam não sobre as prisões nazistas construídas durante a Segunda Guerra Mundial, ou seja, quase três décadas depois. O diálogo diz respeito aos currais erguidos no Ceará pelos governos estadual e federal para isolar os famintos da seca de 1915, considerada uma das mais trágicas de todos os tempos no Nordeste.
O objetivo dos campos era evitar que os retirantes alcançassem Fortaleza, trazendo “o caos, a miséria, a moléstia e a sujeira”, como informavam os boletins do poder público à época. Naquele ano, criou-se o campo de concentração (era assim mesmo que se chamava) do Alagadiço, nos arredores da capital cearense, cenário do livro de Rachel, que chegou a juntar 8 mil esfarrapados, que recebiam alguma comida e permaneciam vigiados por soldados. A segregação dos miseráveis era lei, mas chegou um momento em que o flagelo em massa era tão chocante, com uma média de 150 mortes diárias, que o governo do Estado ordenou, em 18 de dezembro 1915, como contam os arquivos dos jornais da época, a dispersão dos flagelados, ou “molambudos”, como eram também conhecidos.
Segundo o historiador Marco Antonio Villa, autor de Vida e Morte no Sertão, durante a seca de 1915 teriam morrido pelo menos 100 mil nordestinos. Outros 250 mil migraram para escapar da “velha do chapelão” – como a fome era conhecida no imaginário do semi-árido.
O medo das autoridades diante dos flagelados da seca tinha um antecedente. Em 1877, uma leva de cerca de 110 mil famintos saiu dos sertões e tomou as ruas de Fortaleza, assombrando os moradores que viviam a ilusão, importada de Paris, de urbanismo e civilidade. No livro A Fome, o mais consistente relato sobre o cenário de 1877 nas ruas da capital, o cientista social e escritor Rodolfo Teófilo assim descreve o que viu: “A peste e a fome matam mais de 400 por dia! O que te afirmo é que, durante o tempo em que estive parado em uma esquina, vi passar 20 cadáveres: e como seguem para a vala! Faz horror! Os que têm rede, vão nela, suja, rota, como se acha; os que não a têm, são amarrados de pés e mãos em um comprido pau e assim são levados para a sepultura. E as crianças que morrem nos abarracamentos, como são conduzidas! Pela manhã os encarregados de sepultá-las vão recolhendo-as em um grande saco; e, ensacados os cadáveres, é atado aquele sudário de grossa estopa a um pau e conduzido para a sepultura”.
Memórias do horror
O ano da graça de 1915, relatado na ficção de Rachel de Queiroz, sertaneja da fazenda Não Me Deixes, no município de Quixadá (CE), seria apenas o ensaio da segregação estatal dos miseráveis. Em 1932 é que o modelo de isolamento iria vingar para valer. Na “seca de quinze” – como era chamada a estiagem – ainda não existia sequer a famosa “indústria da seca”, como se convencionou chamar a ajuda do poder federal às oligarquias nordestinas – diante das ameaças de saques e violência das legiões de famintos, os grandes proprietários de terra sempre chantagearam o governo federal, principalmente a partir dos anos 1930, alocando recursos para a região que na maioria das vezes acabavam se revertendo em benefício das próprias elites.
“De longe eu sentia o cheiro de podridão, chegava a tapar as ventas. Era tão forte o fedor que é como se eu o sentisse hoje, mesmo eu estando com a memória fraquinha, fraquinha”, diz Manuel Conceição Rodrigues de Sá, 87 anos, um rapaz de 15 anos durante a seca braba de 1932. Hoje, ele mora no subúrbio de Juazeiro do Norte, no Ceará, terra do Padre Cícero, personagem que já era celebrado como santo naquele tempo, pelas levas de famintos que buscavam por sua bênção. Manuel morava, então, no município de Serra Talhada, em Pernambuco. Trabalhava como tropeiro – tocava burros com carregamentos de cachaça dos engenhos da região do Cariri, no sul do Ceará, para municípios de Pernambuco e da Paraíba. “Era num sítio ali perto do Crato, só vi uma vez de perto o campo de concentração, nunca mais tive coragem de passar junto. Pense num desmantelo! Gente apodrecendo de verdade, pareciam uns urubus quando o governo mandava comida”, afirma o ex-mascate.
O cearense do Cariri Miguel Arraes de Alencar, nascido em dezembro de 1917, na cidade do Araripe, governador de Pernambuco por três mandatos, guarda também lembranças do campo de concentração do Crato, onde morou sua família. “A seca braba de 32 é muito forte em minha memória. Um dia, quando ia estudar, me deparei com três homens presos. Eram flagelados do curral da concentração. Foram presos como desordeiros, só porque ficaram revoltados com as injustiças na distribuição de comida por lá”, afirmou Arraes em conversa com este repórter, em 2002. “É uma lembrança que guardo para sempre, as histórias vindas de lá eram um horror danado.”
Pelo campo de concentração do Crato passaram cerca de 65 mil pessoas durante aquela estiagem. Ali, o governo prometia comida, água, assistência médica e oferta de trabalho. Pouco disso, no entanto, acontecia. Não havia água tratada, nem comida para todos e muita gente morria de fome ou doença e era sepultada ali mesmo. O campo se tornou um foco de tudo o que é infecção. Em alguns dias, o número de mortes de famintos alcançava a marca de 200. Há registros de pelos menos outros cinco currais no estado do Ceará, localizados em Quixeramobim, Senador Pompeu, Cariús, Ipu, Quixadá e o último nos arredores de Fortaleza, como derradeira tentativa de evitar que os famintos convivessem com a população da capital.
"Eram locais para onde grande parte dos retirantes foi recolhida a fim de receber do governo comida e assistência médica. Dali não podiam sair sem autorização dos inspetores do campo. Havia guardas vigiando constantemente o movimento dos concentrados. Ali ficavam retidos milhares de retirantes a morrer de fome e doenças’’, diz a historiadora Kênia Rios, da PUC-SP. As estatísticas oficiais, que não conseguiam abarcar todos os alistados nos “currais”, dão conta de 73918 “molambudos” nas seis áreas de confinamento – 6507 em Ipu; 1 800 em Fortaleza; 4 542 em Quixeramobim; 16 221 em Senador Pompeu; 28648 em Cariús e 16200 no Crato, conforme uma das melhores fontes sobre o assunto, o livro Campos de Concentração no Ceará – Isolamento e Poder na Seca de 1932, de Kênia Rios.
Um sobrevivente da segregação é Antonio Siqueira da Silva, de 90 anos, que tinha 18 anos quando foi “jogado” com a família – pai, mãe e mais 12 irmãos – no “curral dos flagelados” do Crato. A família havia mudado do município de Quebrangulo, terra do escritor Graciliano Ramos, para Juazeiro do Norte, cidade hoje emendada ao Crato, em 1930. “A gente veio por causa dos milagres do meu padim Ciço. Só se falava nas obras do ‘meu padim’ por esse mundão todo afora. Ai meu pai pegou a penca de menino, botou em cima dos burros, e chegamos aqui em Juazeiro, pois lá nas Alagoas não tinha mais como viver que preste”, diz Silva, em depoimento para o projeto Nova Geografia da Fome, do Centro Cultural Banco do Nordeste. “Chegando aqui o meu padim nos botou lá no sítio do beato Zé Lourenço, onde tinha muita fartura. O mundo todo sem nada para comer e o beato lá dando de comer a todo mundo, até irrigação já tinha.”
Seguidor do padre Cícero, Lourenço (1872-1946), nascido na Paraíba, chegou a abrigar cerca de mil pessoas no começo dos anos 1930. Conhecida como o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, a comunidade foi destruída e bombardeada – a primeira vez que as Forças Armadas usaram aviões para um massacre no Brasil – em 1937, por ordem do ministro da Guerra Eurico Gaspar Dutra, durante o governo de Getúlio Vargas. O poder central, insuflado pelas autoridades cearenses, temia que o beato pudesse transformar o seu vilarejo em mais um Canudos, episódio que ainda assombrava os militares. No massacre, teriam morrido cerca de 700 pessoas. Lourenço escapou, fugindo pela Chapada do Araripe. Doente, morreria nove anos depois, em Exu (PE), município nas cercanias do Crato.
“O sítio do beato foi ficando cheio de gente demais, ai meu pai achou melhor a gente escapar da fome lá no ‘curral dos flagelados’, pois o governo prometia muita esmola por lá”, diz o sobrevivente do campo de concentração Antônio da Silva. “Mas quem disse que as esmolas chegavam? Lá perdi foi seis irmãos, de fome braba. Eu mesmo só escapei porque fugi com o resto, de madrugada, ainda lembro como se fosse hoje. Era uma catinga tão feroz, meu filho, que nem dava pra dormir direito. E os urubus em cima, querendo arrancar as tripas dos falecidos.”
A história das secas que castigam a população do Nordeste desde pelo menos 1877, deixou um rastro de tragédias e mortes assombroso. Nunca foi feito um levantamento a respeito dos números de nordestinos que perderam as vidas por causa da fome nestes períodos. Os levantamentos parciais, no entanto, são assustadores. Somente entre 1877 e 1913, portanto ainda sem os números da seca de 1915, o governo federal, por intermédio do IOCS estimava que 2 milhões de pessoas haviam morrido em conseqüência da miséria nas estiagens. Pouco mais de 100 anos depois, a equipe do livro Genocídio do Nordeste (organizado pela Comissão Pastoral da Terra e o Ibase, entre outras organizações) repetiu o desafio de contar as vítimas da seca e chegou ao número de 3,5 milhões de mortos somente no período entre os anos de 1979 e 1984.
Da frigideira para o fogo
Cearenses foram pararnas trincheiras da revoluçãoem São Paulo
Em 1932, enquanto a seca castigava o sertão, uma guerra era travada a 3 mil quilômetros dali. Em São Paulo, tropas revolucionárias enfrentavam o Exército brasileiro num levante contra Getúlio Vargas, que assumira a presidência em 1930. Quando a luta apertou, os governos federal e estadual, que criaram os campos de concentração no Ceará, convocaram seus ocupantes para engrossar o caldo contra os paulistas. Para quem estava faminto e desabrigado, servir o Exército não parecia ser tão ruim. Sem ter a menor noção do que enfrentariam, muitos seguiram de navio e caminhão para as trincheiras de São Paulo. O escritor paraibano José Américo de Almeida, ministro da Viação, responsável pela política de combate à seca no Nordeste, foi um dos defensores da medida: “O Norte veio para a trincheira impelido pela gratidão e pelo instinto de conservação, pois só no Ceará o Ministério da Viação deu trabalho a 100 mil homens e 500 mil brasileiros foram salvos da fome”, disse, na época, ao jornal O Povo, de Fortaleza. Segundo o jornal, em 19 de agosto, pouco mais de um mês do início dos combates, já haviam sido enviados pelo menos 1 200 cearenses para a linha de fogo. Entre eles, crianças e idosos. “O apoio da nova oligarquia nordestina a Vargas materializou-se na formação de batalhões de voluntários, boa parte constituída por retirantes, inclusive crianças e adolescentes”, diz o historiador Marco Antonio Villa no livro Vida e Morte no Sertão. O Povo registrou os sofrimentos desses nordestinos em São Paulo, “submetidos às mais duras humilhações”. O jornal relatou que na capital paulista a população provocou depredações e incêndios em lojas cujos proprietários eram migrantes do Ceará. No seu livro, Villa conta que os soldados da seca não tinham treinamento adequado para quem ia a uma guerra, nenhuma experiência militar e até o fardamento que utilizavam era inadequado para a região, o que fazia a tropa passar muito frio. Porém, não há estatísticas sobre o número de vítimas nordestinas na guerra vencida por Getúlio, mas estima-se que menos da metade retornou ao Ceará.
Fome no campo
Meu avô presenciou a morte do irmão
Xico Sá
“Seco, meu Deus, só o fiapinho de gente, despencou em cima da carroça [carrinho de mão], já se tremendo todinho e ali mesmo morreu”, contava João Patriolino de Menezes, meu avô, sobre a morte do irmão, Francisco, durante a construção de um açude na Batateira, nos arredores da cidade do Crato, no Ceará. Chico Patriolino, como meu tio era chamado, nascido no vizinho município de Exu, em Pernambuco, era um dos alistados do campo de concentração do Cariri, o maior do território cearense. Tinha 22 anos quando foi vítima da tragédia. Meu avô João escapou por ter sido “adotado” pelo coronel pernambucano Manuel Alexandre de Sá, a quem servia como jagunço em uma tropa que chegou a ter 120 homens e que, em duas oportunidades, em 1926, invadiu a cidade de Santana do Cariri (CE) para tentar depor o prefeito, outro coronel, Felinto da Cruz Neves, também com fortes ligações com o cangaço. No primeiro confronto foram dez horas de troca de tiros, no segundo, 36 horas de conflito, conforme relata o livro Guerreiros do Sol, do historiador Frederico Pernambucano de Mello, da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife. Nos dois combates, o bando de Sá acabou recuando. “Quando comecei a comer direito, quase morro também, pois o corpo não estava acostumado. Passava sempre mal até me acostumar”, afirmava ele, morto em 1991, aos 75 anos. “Madrinha Zefinha [mulher de Sá] foi me cevando aos poucos, pois eu era só a grade de gente.” Chico e João saíram da casa dos pais, em Exu, para tentar escapar da seca braba de 1932. Dos 12 irmãos, meu avô só voltaria a encontrar sua irmã Rudá, ainda viva, aos 89 anos, residente em São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo. “Soube que morreu um bocado, naquela seca mesmo”, era tudo que dizia João quando indagado pelos parentes sobre o restante dos seus irmãos. “E eu, que escapei da fome, por muitas vezes estive pra morrer de bala. Era assim naquele tempo. Sobreviver nessas duas guerras foi um milagre de meu Padre Cícero do Juazeiro, só sendo, pois eu vi a velha da foice umas 200 vezes.”
Saiba mais
Livros
Campos de Concentração no Ceará – Isolamento e Poder na Seca de 1932, Kênia Rios, Museu do Ceará, 2001 - Obra de referência sobre o assunto, traz análises bem documentadas e detalhes riquíssimos
Vida e Morte no Sertão, Marco Antonio Villa, Ática, 2000 - Retrato das secas nordestinas desde o século 19 e de como suas vítimas foram assistidas pelo governo
O Quinze, Rachel de Queiroz, José Olympio, 2004 - A história de uma voluntária na ajuda a flagelados do campo de concentração cearense de 1915
Leia mais em
Fonte: Histórias Abril
Um comentário:
SÍTIO CALDEIRÃO, O ARAGUAIA DO CEARÁ: UM GENOCÍDIO 72 ANOS NA IMPUNIDADE!
No CEARÁ, para quem não sabe, houve também um crime idêntico ao do “Araguaia”, contudo em piores proporções, foi o MASSACRE praticado por forças do Exército e da Polícia Militar do Ceará no ano de 1937, contra a comunidade de camponeses católicos do Sítio da Santa Cruz do Deserto ou Sítio Caldeirão, que tinha como líder religioso o beato JOSÉ LOURENÇO, seguidor do padre Cícero Romão Batista.
A ação criminosa deu-se inicialmente através de bombardeio aéreo, e depois, no solo, os militares usando armas diversas, como fuzis, revólveres, pistolas, facas e facões, assassinaram mulheres, crianças, adolescentes, idosos, doentes e todo o ser vivo que estivesse ao alcance de suas armas, agindo como feras enlouquecidas, como se ao mesmo tempo, fossem juízes e algozes.
Como o crime praticado pelo Exército e pela Polícia Militar do Ceará foi de LESA HUMANIDADE / GENOCÍDIO / CRIME CONTRA A HUMANIDADE é considerado IMPRESCRITÍVEL pela legislação brasileira bem como pelos Acordos e Convenções internacionais, e por isso a SOS - DIREITOS HUMANOS, ONG com sede em Fortaleza - Ceará, ajuizou no ano de 2008 uma Ação Civil Pública na Justiça Federal contra a União Federal e o Estado do Ceará, requerendo que sejam obrigados a informar a localização exata da COVA COLETIVA onde esconderam os corpos dos camponeses católicos assassinados na ação militar de 1937.
Vale lembrar que a Universidade Regional do Cariri – URCA, poderia utilizar sua tecnologia avançada e pessoal qualificado, para, através da Pró-Reitoria de Pós Graduação e Pesquisa – PRPGP, do Grupo de Pesquisa Chapada do Araripe – GPCA e do Laboratório de Pesquisa Paleontológica – LPPU encontrar a cova coletiva, uma vez que pelas informações populares, ela estaria situada em algum lugar da MATA DOS CAVALOS, em cima da Serra do Araripe.
Frisa-se também que a Universidade Federal do Ceará – UFC, no início de 2009 enviou pessoal para auxiliar nas buscas dos restos dos corpos dos guerrilheiros mortos no ARAGUAIA, esquecendo-se de procurar na CHAPADA DO ARRARIPE, interior do Ceará, uma COVA COM 1000 camponeses.
Então por que razão as autoridades não procuram a COVA COLETIVA das vítimas do SÍTIO CALDEIRÃO? Seria descaso ou discriminação por serem “meros nordestinos católicos”?
Diante disto aproveitamos a oportunidade para pedir o apoio nesta luta, à todos os cidadãos de bem, no sentido de divulgar o CRIME PERMANENTE praticado contra os habitantes do SÍTIO CALDEIRÃO, bem como, o direito das vítimas serem encontradas e enterradas com dignidade, para que não fiquem para sempre esquecidas em alguma cova coletiva na CHAPADA DO ARARIPE.
Dr. OTONIEL AJALA DOURADO
OAB/CE 9288 – (85) 8613.1197
Presidente da SOS - DIREITOS HUMANOS
www.sosdireitoshumanos.org.br
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