por Luiz Carlos Azenha
Que diabos é “resgate do raciocínio clínico”?
É ter, diriam os médicos, uma atitude mais holística, completa, em relação ao paciente.
É pedir exames e receitar remédios só quando forem estritamente necessários.
É servir primeiro ao paciente, não às indústrias farmacêutica, de laboratórios clínicos e de equipamentos médicos.
Ajudar os colegas brasileiros a resgatar o raciocínio clínico. É a
consequência esperada pelo médico Marcelo Coltro da passagem de 4 mil
médicos cubanos pelo Brasil.
Diferentemente de muitos colegas, ele dá boas vindas aos cubanos. Fruto, talvez, de ter estado recentemente em Cuba.
Marcelo é especializado em Medicina de Família e Comunidade.
Concursado, trabalha na Prefeitura de Florianópolis. Em fevereiro deste
ano, esteve em Cuba com um grupo de médicos brasileiros para trocar
experiências no setor. Viveu outra particularidade: depois de formar-se
na Universidade Federal de Pelotas, foi o único médico residente em
Protásio Alves, na serra gaúcha, experiência que muitos cubanos viverão
agora, em cidades do Norte e Nordeste brasileiros.
Sem a histeria que tem caracterizado a reação de alguns médicos à
chegada dos cubanos, Marcelo conta como foi sua experiência. Fala das
similaridades e diferenças entre os dois sistemas de saúde, sobre o que o
Brasil pode ensinar a Cuba e vice-versa.
Ciego de Ávila, na província de mesmo nome, cidade visitada pelo dr. Marcelo Coltro (wikipedia)
Trechos da entrevista, em que Marcelo fala também sobre o que Cuba
pode aprender com o Brasil no setor e conta a história de um provável
erro de médico brasileiro corrigido em Cuba, que ele testemunhou:
“Como o número de médicos [em Cuba] é maior em relação
médico/habitante do que no Brasil, eles conseguem ter uma capacidade de
cuidado muito melhor do que os médicos brasileiros aqui no sistema
público. Por exemplo, a cidade que eu visitei, onde eu estive, tinha um
médico dentro do sistema de saúde para cada 800 habitantes. Então, eles
conseguiam organizar através da sua área de atuação a população de uma
forma muito melhor estruturada do que a gente consegue organizar aqui no
Brasil em que cada médico de família é responsável por 4 mil, 6 mil, 7
mil habitantes e tem cidades onde o médico de família é responsável pela
cidade inteira”.
“Eu acho que se fosse uma força de trabalho médica para vir para o
Brasil e permanecer para sempre eles deveriam fazer o Revalida. Mas eu
entendi que no programa Mais Médicos eles vem para o Brasil não com
interesse de substituir a mão-de-obra médica brasileira, que o programa
Mais Médicos traz médicos estrangeiros para o Brasil até que o Brasil
consiga se adequar à sua própria formação médica, enquanto isso vai
acontecendo esses médicos estrangeiros seriam temporários e por isso
talvez não precisem fazer o Revalida, que eles tem experiências em
outras missões internacionais”.
“Quanto à formação médica dos médicos cubanos, me pareceu que eles
tem uma formação médica muito semelhante à formação médica brasileira, e
eu diria que é bem rígida por eles serem militarizados e
super-estruturados. Eles tem o mesmo número de anos que a gente tem aqui
na formação médica. Eles também tem especialidades lá, mas todos os
médicos formados inicialmente tem de ser médicos de família, de
comunidade. Precisam ter experiência médica para depois passarem para as
especialidades. São muito bons cirurgiões, são bons oftalmologistas,
são bons ortopedistas, mas principalmente são bons médicos de família e
de comunidade”.
“Talvez os médicos cubanos possam ensinar para a gente como usar
melhor a tecnologia. Talvez a gente use a tecnologia muito precocemente
quando cuida das pessoas. Ao andar pelas ruas de Ciego de Ávila, em
Cuba, você não encontra farmácias como encontra aqui no Brasil. Quando
você encontra farmácias em Cuba você tem muitas medicações que são
fitoterápicas, medicações que a gente encontra aqui no Brasil numa
quantidade um pouco menor. Assim como aqui no Brasil nós temos
dificuldades de ter concentração de tecnologia por exemplo nos postos de
saúde, por conta de ser muito caro, eles tem uma otimização de
tecnologia muito maior. Quando uma pessoa lá em Cuba é submetida a uma
tomografia é porque realmente ela tem necessidade de fazer essa
tomografia”.
“Lá não é frequente a questão de você fazer check-up como é muito
comum aqui no Brasil. Ou fazer exames laboratoriais de rotina para as
pessoas ficarem medindo colesterol quando tem queixas de dor-de-cabeça
ou tem queixas super inespecíficas para exames que são muito difundidos
na mídia. Então eu vi que lá talvez tenha uma racionalização do uso da
tecnologia que por conta da influência da indústria farmacêutica e da
indústria dos insumos de saúde no Brasil desde a década de 60 nós
perdemos, a questão do ampliado raciocínio clínico que os médicos tem lá
e uma otimização da tecnologia”.
“Aqui a gente vê cada vez a mercantilização da medicina. Eu diria que
os médicos brasileiros são bons médicos, mas existe dentro da formação
médica, nas escolas de medicina, uma grande inclinação para você fazer
uso de muita tecnologia, exames laboratoriais, exames de imagem e também
uso de medicamentos de uma forma talvez um pouco mais precoce de que se
a gente pudesse avaliar esses pacientes com um pouquinho mais de um
olhar holístico, ou humanista, e com uma percepção de poder compreender
um pouquinho antes de usar tecnologia, antes de usar um medicamento
precoce, antes de pedir um exame laboratorial que muitas vezes a gente
sabe que vai dar normal e tá pedindo porque tem uma orientação
protocolar para isso”.
“Talvez os médicos cubanos possam trazer para nós um resgate do
raciocínio clínico que as escolas de medicina e as profissões ao longo
dos anos foram perdendo por conta de um adensamento tecnológico muito
grande”.
“A gente tem alguns estudos que mostram que 75% dos médicos
brasileiros recebem visitas de laboratórios, para medicamentos. São
pessoas que visitam os consultórios médicos com frequência. Ao visitar
estes consultórios existe muita informação dos laboratórios para estes
profissionais. Alguns outros estudos mostram que até 41% dessas pessoas
visitadas tem como referência essa visita da indústria para prescrever
as medicações. Você tem uma grande influência da indústria farmacêutica
dentro da prática médica no Brasil. Isso também se expande para o uso da
tecnologia, como exames laboratoriais”.
“Você tem muitos professores de faculdade de medicina no Brasil que
tem vínculo empregatício com indústrias farmacêuticas ou com indústrias
que produzem tecnologia em saúde. Isso acaba influenciando seguramente a
formação médica e o uso de tecnologia. Necessária, que bom que a gente
tem essa tecnologia, mas muitas vezes precoce e diria até que de certa
forma indiscriminada, sem uma boa indicação, sem um raciocínio clínico
adequado”.
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