Francisco Carlos Teixeira da Silva (*) em Carta Maior
As condições geopolíticas da região – incluindo aí todo o Oriente Médio e áreas adjacentes – mudam a cada dia ( em parte em função das revoltas populares em curso ), com conseqüências que só podemos com dificuldade avaliar. Contudo, o risco de uma crise que escale em proporções militares generalizadas é real. De certo ponto de vista a guerra já começou, num estilo novo, de guerra “encoberta e psicológica". O artigo é de Francisco Carlos Teixeira da Silva.
A situação política e militar na região do Golfo Pérsico, em especial junto ao Estreito de Hormuz, chegou nestes últimos dias a um ponto de altíssima tensão. Um conjunto de medidas políticas, militares e econômicas tomadas pelos Estados Unidos, União Européia, Japão, Coréia do Sul e Austrália colocam o Irã na mais delicada situação desde o ataque americano ao Iraque em 2003. As condições geopolíticas da região – incluindo aí todo o Oriente Médio e áreas adjacentes – mudam a cada dia ( em parte em função das revoltas populares em curso ), com conseqüências que só podemos com dificuldade avaliar. Contudo, o risco de uma crise que escale em proporções militares generalizadas é real. De certo ponto de vista a guerra já começou, num estilo novo, de guerra “encoberta e psicológica".
Da guerra “encoberta” a guerra psicológica
Nos últimos meses quatro importantes cientistas nucleares iranianos – acadêmicos, de formação universitária e civil – foram mortos por atentados terroristas no próprio Irã. Da mesma forma, várias unidades nucleares iranianas (e outras instituições de pesquisa e financeiras) foram atingidas por ataques cibernéticos de origem desconhecida, com graves prejuízos para os trabalhos em curso. Os analistas internacionais, mesmo os americanos e israelenses mais próximos de seus governos, não negam a provável origem americana e/ou israelense de tais procedimentos. Chegou-se mesmo a avocar uma categoria especial de conflito não-declarado: a guerra encoberta. Ambos os países, EUA e Israel, possuem meios e interesses que se coadunam claramente com o desenho dos ataques contra a inteligência nuclear iraniana.
A estes ataques somar-se-iam uma série de medidas de restrição e boicote econômico e financeiro decidido ora no âmbito do Conselho de Segurança da ONU (com abstenção da China Popular e da Federação Russa), ora no âmbito de alianças especificas, como a NATO ou OTAN. Até esta semana a União Européia, em grave crise financeira e com altíssimos índices de desemprego, estava recusando, ou adiando, uma clara adesão ao boicote econômico proposto pelos EUA contra o Irã. No entanto, esta semana (20/01/2012), a União Européia declarou adesão ampla ao bloqueio, decidindo encerrar suas compras de petróleo iraniano até o dia 1 de julho de 2012. Os três principais compradores – Grécia, Itália e Espanha, justamente países mais fortemente atingidos pela crise financeira – devem encerrar seus contratos com Irã, sob garantia de que a Arábia Saudita – um oponente sunita do Irã - fornecerá petróleo pelo mesmo preço e sem alterações, mesmo que a crise leve o preço do barril a novos patamares.
Japão e Coréia do Sul, ambos grandes compradores, já haviam declarado sua adesão na semana anterior e no final do dia (22/01/2012) a Austrália aderiu ao boicote.
Além disso, a Secretaria do Tesouro dos EUA declarou embargo contra o banco central do Irã, três dos seus maiores bancos privados e várias empresas de petróleo e petroquímicas. Isso impede que façam negócios com empresas americanas ou com empresas não-americanas, mas que também negociem com os EUA. Assim, quinhentas instituições e pessoas no Irã foram “bloqueadas” pelos EUA.
A inusitada unanimidade entre os aliados ocidentais foi desenhada através de um giro mundial do secretário (ministro) do Tesouro dos EUA, Thimoty Geither, por vários países. Desenha-se assim uma atuação consistente e sistêmica de Washington visando à asfixia econômica do país.
Ao mesmo tempo o Chefe da Junta de Chefes do Estado-Maior norte-americano, general Martin Dempsey, deslocou-se para Israel e teve longos e fraternos encontros com a cúpula militar israelense – o assunto central era o “risco Irã”. Enquanto isso o porta-aviões “USS Abraham Lincoln” (navio aeródromo de propulsão nuclear, com cerca de 90 aviões e helicópteros de combate e cinco mil homens) foi deslocado para a ultra-sensível Estreito de Hormuz, com uma escolta de navios de guerra da Inglaterra e França. No Golfo Pérsico já se encontra a Va. Frota dos EUA.
Cria-se um possível ambiente de guerra na região.
A posição do Irã
O Irã negocia, ou negociou, com o Ocidente em três frentes diversas: no próprio Conselho de Segurança da ONU, em conversações com a União Européia em Istambul, na Turquia, e na mesma cidade, com o Brasil e a própria Turquia, como mediadores para uma solução negociada do controverso programa nuclear do país.
Desde 2011 o Irã opera com 40% da sua capacidade (de 1000 megawatts) uma usina nuclear na região de Bushsher (com assistência inicial das firmas alemãs Siemens e Telefunken, e mais tarde da empresa russa Atomstroyexport e RosTom, com algumas centenas de técnicos russos).
Segundo a Agência Internacional de Energia Atômica/AIEA, órgão assessor da ONU com sede em Viena, a usina de Bushsher possui “possible military dimension” e o Irã estaria “desenvolvendo atividades relevantes para dotar-se de uma capacidade nuclear”. Ao mesmo tempo a AIEA acusa o país de manter parte de seu programa, perto da cidade de Qom, secreto e sem acesso aos inspetores da AIEA. Da mesma forma declara ter “detectado” esforços na direção de testar dispositivos de gatilho que podem ser usados em armas nucleares. De posse de tais evidências solicita, de forma enérgica, que o Irã assine o “Protocolo Adicional” do Tratado de Não-Proliferação Nuclear/TNP, que permite inspeções internacionais das plantas de um país, com aviso prévio de apenas 24 horas e sem limites de acesso.
O Irã insiste que seu programa é pacífico, visa à produção de energia eletrifica – mais limpa e mais barata do que o petróleo, que seria reservado para as exportações gerando divisas para o desenvolvimento do país. Além disso, precisa da energia nuclear para fins médicos, como qualquer país. Cabe ainda destacar que a região geopolítica do Irã é altamente “nuclearizada”: os vizinhos orientais do país – Paquistão e Índia, são potências nucleares; o vizinho norte, no Cáspio, é a Rússia e a ocidente Israel é dotado de pelo menos 200 ogivas nucleares. Além disso, a Va. Frota dos EUA, estacionada no Golfo Pérsico, é dotada de capacidade nuclear. Assim, a proposta do então presidente Lula de uma “zona desnuclearizada” (como a América Latina o é) não parece realista.
As conversações com a U.E. em Istambul não resultaram em qualquer avanço, posto que o Irã não mostrasse interesse em acessar o conjunto de suas instalações nucleares aos inspetores internacionais e a U.E., por sua vez, assumiu uma posição fundamentalista, exigindo a assinatura do Protocolo Adicional e livre acesso ao conjunto das instalações locais. Cabe lembrar, que o primeiro inspetor chefe da AIEA, e embaixador da Austrália na ONU (o senhor Richard Buttler), ao examinar as instalações iraquianas – em busca das míticas “armas de destruição em massa” – passava informações estratégicas diretamente aos governos dos EUA e de Israel, antes mesmo de enviar seu relatório a AIEA ou a ONU. Da mesma forma Hans Blix e Mohammad El-Baradei (este atual carta política dos EUA na “Primavera Egípcia”) jamais conseguiram dizer, com clareza, se o Iraque possuía ou não armas de destruição em massa. Ou seja, o passado das inspeções da AIEA é, no mínimo, duvidoso.
O acordo assinado com o Brasil e a Turquia – sob incentivo direto do Presidente Obama – foi desconsiderado por Washington, que o declarou insuficiente. Na verdade, Obama viu-se em choque direto com a Secretaria de Estado e de Defesa, e, isolado, para manter a face recusou o acordo que ele mesmo pediu ao Brasil para negociar.
O que mais complica o quadro acima é que a maioria da população iraniana – cerca de 68 milhões de pessoas, num país do tamanho do estado do Amazonas - concorda, neste ponto, com o governo Ahmandinejad: Teerã tem direitos iguais a de qualquer país, digamos como o Brasil, de se dotar de tecnologia nuclear sem ser tutelado pelas potências ocidentais. Mesmo a oposição interna defende o desenvolvimento da tecnologia nuclear e afirma que o Ocidente fortalece Ahmandinejad ao ameaçar o país com boicotes e sanções.
Por que uns podem e o Irã não pode?
Este tem sido um argumento muito usado pelo governo de Teerã para caracterizar a injustiça das medidas da AIEA, da ONU e das potências ocidentais sobre o seu programa nuclear. Há aqui casos e casos. O mais notável é de países como Israel – com suas duas centrais nucleares em Dimona, no Deserto do Neguev e um possível arsenal de 200 ogivas atômicas. Ou ainda a Índia, com um não-calculado arsenal nuclear (ao menos 40 ogivas) e poderosos vetores de ataque (a performática aviação militar indu e os mísseis de longo alcance “Agni”). Com este último país a Administração Obama assinou acordos de ampla cooperação, inclusive no campo nuclear e com Israel, é claro, trata-se de um aliado, destino da maior ajuda militar e econômica dos EUA.
A resposta para os diferentes tratamentos é clara e direta: ambos os países são democracias consolidadas, que respeitam os acordos internacionais e os direitos humanos. Enquanto isso o Irã é uma ditadura religiosa, falsificou os resultados das últimas eleições presidenciais (em junho de 2009, quando Ahmandinejad foi reeleito), massacrou e torturou a oposição democrática no interior do país e adotou medidas brutais contra seus próprios cidadãos – como o apedrejamento de mulheres ou o enforcamento de homossexuais. Além disso, o Irã apóia, financia e arma redes “terroristas internacionais”, como o Hezbollah no Líbano e a Milícia do Mahdi (xiita radical) no Iraque. Com tais diferenças notáveis o Irã não seria um país confiável na comunidade internacional para poder dotar-se de armas nucleares.
Bem, sempre podemos discutir se Israel respeita os tratados e acordos internacionais (Israel é o segundo país do mundo, depois do Marrocos, a descumprir decisões da ONU) e já usou, e usa, meios como assassinatos seletivos em territórios estrangeiros, como no Kuwait, Turquia, Jordânia e no prórpio Irã. Mas, sem dúvida, Israel é um país institucionalmente estabelecido e não apedreja pessoas, não estupra presos políticos ou enforca diferentes em praça pública...
Cabe destacar que mais de cinqüenta países possuem, hoje, capacidade de desenvolver tecnologia nuclear e os limites entre pesquisa nuclear para “fins pacíficos” e o desenvolvimento de armas é bastante tênue. Entre os países que se recusam assinar o Protocolo Adicional do TNP estão aliados dos Estados Unidos, tais como Índia e Paquistão. E é claro, Alemanha, Japão, Canadá, Coréia do Sul, Egito ou Turquia podem desenvolver armas nucleares assim o que queiram. O caso mais significativo é do Brasil: o país possui hoje capacidade nuclear plena, tecnologia própria de enriquecimento de combustível (em Rezende, RJ) e se nega a assinar o Protocolo Adicional, considerado um mecanismo de espionagem industrial das grandes potências. Bem, tratam-se de países “sérios”, democracias que cumprem seus contratos internacionais.
Mas, existe um outro caso: Paquistão e Coréia do Norte. No primeiro caso trata-se de um país de grave instabilidade interna, onde o ISIS, o serviço de espionagem das FFAA é praticamente um Estado dentro do Estado. A situação dos direitos humanos no país é lamentável, com militantes humanistas ou religiosos cristãos ou xiitas mortos dentro de seus templos. Lá estava ocultado, sem incômodos, Bin Laden e de lá partem organizações terroristas para atacar hotéis e mercados na Índia ou mesmo tropas dos Estados Unidos no Afeganistão. Contudo, os Estados Unidos, a AIEA ou o Conselho de Segurança da ONU não boicotam o Paquistão. Pior ainda é o caso da Coréia do Norte: uma ditadura ridícula, com brutal repressão da população, com gastos miliatres que geram ondas de fome que matam milhares de pessoas por ano. O país é dotado de mísseis que podem arrasar Seul ou cerca de dez cidades do Japão com mais de três milhões de habitantes e fez testes nucleares (de difícil operação tática). Contudo, no caso da Coréia do Norte os Estados Unidos preferem negociar.
Em suma, o Irã é um caso especial, escolhido como exemplo. Dois fatores podem explicar a decisão de dobrar o Irã: sua produção de petróleo, essencial (como no caso da Líbia) para a sobrevivência econômica do Ocidente e, por outro lado, sua insistente política anti-Israel.
Como seria a guerra?
É pouco provável que os Estados Unidos pretendam invadir o Irã. Este não é um cenário provável. Depois dos envolvimentos americanos no Afeganistão, em 2001 (com 2876 baixas ocidentais, das quais 1886 norte-americanas até janeiro de 2012), e no Iraque, em 2003 (com 4484 mortes norte-americanas) – sem falar nos milhares de civis locais mortos – não parece ser a invasão (tipo “boots on the ground”) uma opção para a Administração Obama. Na verdade Obama se esforçou, até o momento, para “cumprir as tarefas” auto-impostas na campanha eleitoral: matou Bin Laden numa operação de vídeo-game; e fez a retirada das tropas do Iraque e se prepara para fazer o mesmo no Afeganistão. Assim, não é o caso de mandar mais “american boys” morreram em algum lugar estranho do mundo...
A solução estaria em combinar a “guerra encoberta” – assassinatos e sabotagens – com a guerra “econômica e psicológica” para levar o Irã a capitular. Caso tais medidas não resultem nos objetivos propostos, teríamos o “Plano B”. Alguns conselheiros de Obama, como o “superfalcão” Matthew Kroenig advogam uma guerra de tipo “surgical strikes”. Trata-se do uso da superioridade aérea dos Estados Unidos (e de Israel), com aviação, mísseis e dromes diretamente contra as instalações nucleares iranianas em Natanz, Esfahan, Bushsher, Arak, Fordo e nos subúrbios de Teerã. Mesmo que as instalações estejam em bunkers subterrâneos – muitos há quinze metros de profundidade e com casamatas de concreto reforçado – os EUA usariam armas do tipo “Massive Ordnance Penetrator”, capazes de perfurar tais instalações.
Como se justificaria o ataque? Neste caso existem algumas possibilidades previstas, a saber: 1. Conflito direto EUA-Irã, sem a presença de Israel (em respeito aos aliados árabes): qualquer incidente no Estreito de Hormuz ou no Golfo Pérsico, onde os EUA concentraram grande parte de seus navios da Va. Frota pode seria o estopim. Caberiam mesmo simulações, como o “inventado” incidente do Golfo de Tonquim, que serviu de justificativa para os bombardeios de Hanói e Haiphong em 1964; 2. Uma ação descontrolada de uma das instâncias de poder em Teerã, como a Guarda da Revolução Islâmica contra interesses ocidentais – como o fluxo de petróleo no Estreito de Hormuz - e que acabaria sendo respondida por uma ação bélica generalizada; 3. Uma ação de Israel, contra instalações ou cientistas nucleares iranianos, que seria respondida pelos iranianos. Neste caso os EUA iriam em defesa do aliado israelense... e com apoio da opinião pública americana.
Nos três casos a guerra seria longa e penosa, como na Líbia, mas com maior capacidade de resposta por parte dos iranianos. Não bastaria o ataque aos centros nucleares – com risco de converter-se numa “bomba suja”. Seria necessário atacar toda a defesa iraniana, espalhada por um país imenso, montanhoso e com longo litoral.
A dificuldade de tais “pré-cenários” reside em saber a possibilidade de resposta do Irã. O país é dotado de mísseis de médio e longo alcance, capazes de atingir todo o território de Israel, incluindo aí as centrais nucleares de Dimona. Além disso, as tropas americanas no Iraque, Bahrein, Kuwait e Arábia Saudita poderiam ser duramente atingidas. O fluxo do petróleo poderia ser paralisado, mesmo que por algumas semanas, o que chutaria o preço do barril para a casa dos 200 dólares, causando grande dano ao conjunto da economia mundial (já fragilizada). Além disso, os aliados do Irã, como o Hezbollah e o Hamas poderiam lançar graves ataques contra Israel e os aliados dos EUA.
Em suma, as possibilidades de uma nova guerra são reais, mas de conseqüências imprevisíveis, o que faz a decisão ser muito difícil para a Administração Obama. No entanto, estamos num ano eleitoral. Os falcões ultraconservadores do Partido Republicano mordem os calcanhares de Obama... Na tradição americana, presidentes em guerra não perdem eleições!
(*) Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
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