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quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Pinheirinho: um enclave policial no território nacional







Vermelho

Não dá para dizer que a situação se acomodou. Quem manda no Pinheirinho é a polícia. Eram dois mil homens da tropa de choque recrutados em várias cidades, entre elas a capital, mais a Guarda Civil Municipal. Do outro lado, pouco mais de cinco mil moradores, a maioria crianças, mulheres e idosos.
Por Rose Nogueira


Fazendo a conta, dá mais ou menos um policial forte, paramentado para a guerra e disposto a tudo para cada homem adulto de camiseta e sandália. Deve ser recorde mundial e histórico. Nem nas piores guerras – na II Guerra, no Vietnã, no Iraque – teve um soldado para cada civil. Com certeza as legiões romanas não conseguiram essa proporção de um por um nas suas jornadas de conquista. Muito menos Napoleão Bonaparte.

As primeiras notícias falavam em três mortos no primeiro dia. Sem confirmação. Depois, que uma mulher grávida teria morrido. Mais tarde veio a notícia de que uma menina teria levado uma bala de borracha no pescoço e chegado ao hospital sem vida. Até agora nenhuma das duas foi confirmada. Os números oficiais falam em um ferido – que foi operado e está hospitalizado – e 30 presos. Mas é verdade que uma repórter da Radio Brasil Atual quase foi atingida por um tiro de revólver. A TV mostrou com destaque, aliás, um soldado usando revólver. Mesmo que as autoridades insistam em dizer que só usou armas “não letais”.

Dói ver pela TV o soldado empurrando a mãe que carrega o filho enrolado no cobertor, fazendo-a andar mais depressa. Dói escutar uma outra que só conseguiu pegar a criança e se queixou de maus tratos porque voltou para pegar a mamadeira. E ainda uma terceira, que queria entrar em casa para retirar os quatro filhos que ainda dormiam quando a polícia chegou ao amanhecer e disse que estava impedida.

Dói ver vários meninos pequenos, de mãos dadas, correndo descalços pela rua fugindo das bombas, do barulho, da fumaça, do cheiro horrível que impede respirar e faz chorar - perseguidos apenas por terem nascido lá. Um deles levava o cachorrinho na coleira, o afeto que não podia ficar para trás. Talvez estejam alojados agora no campo improvisado pela prefeitura, na fila da comida que suas mães já não fazem em casa – na sua casa. Dormirão no chão da igreja ou em colchões vindos sabe-se lá de onde e não mais na sua caminha ao lado do irmão. Foram todos levados, com as mães e avós, para um “abrigo”.

Alguém chamou esse lugar de campo de concentração. Com razão: é um lugar onde os “inimigos” ficam concentrados. Pelos relatos dos repórteres, quem entrava no campo não podia sair. Mas onde tem guerra, também tem resistência. As grades foram derrubadas. E aí vem mais bomba, mais fumaça, tiros de bala de borracha, gritos, tropeços e correria. Foi assim. A TV mostrou, os sites, os blogues estão no ar. Basta clicar para que nos tragam a imagem do constrangimento. Ficamos constrangidos porque somos humanos, porque só existimos em função da alteridade, de levar o outro em conta como um igual – mesmo que em situações diferentes.

O tratamento desumano dado aos milhares de moradores do Pinheirinho serve a quê? A quem? Até os postes de São José dizem a quem passa que há um megaprojeto de construção moderna para a área – que se valorizou com a expansão imobiliária. Junto com a polícia que acordava e arrancava os moradores de suas casas, os tratores derrubavam as de madeira e lacravam as de alvenaria. Os pertences são um outro problema grave: há fila, senha, portões. Eles ficaram sem nada. Já perderam, além da casa, o emprego, a vida em família, o amigo vizinho, a sociedade que construíram naquele lugar. Como reclamaram na fila, mais gritos, mais bomba, mais fumaça, mais desespero.

Terra arrasada – essa é a pior das guerras. O terreno – de repente avaliado em 200 milhões com uma dívida de 15 para a prefeitura - será entregue limpinho. Para quem? Nesses casos alguém paga a diferença? Se a prefeitura é a única credora, por que esse terreno ainda não é público?

De um dia para o outro os moradores do Pinheirinho transformaram-se em invasores. O bairro – pobre, como começaram todos os bairros – virou acampamento. Mas é bairro. Na TV, todos reparam que as ruas são asfaltadas, que há postes de luz. Muitas casas têm acabamento, algumas são pintadas há pouco tempo. Os moradores dizem que pagam água e eletricidade – ou seja, têm endereço. As ruas foram abertas por eles e são largas, a área é urbanizada, há duas linhas de ônibus - o que dava certeza de que, um dia, seriam donos das casas que puderam construir em mutirão.

Há ainda a questão constitucional. Se os moradores estão lá há oito anos, como diz a prefeitura, têm o direito de usucapião garantido pela Constituição, que prevê cinco anos para o pedido com prova de benfeitoria. Eles construíram tudo por lá. Outra coisa que está na nossa Carta-Cidadã de 1988 é o direito ao teto, garantido pelo artigo 6º– e também integra a Declaração dos Direitos do Homem, assim como o direito à vida. Num outro artigo, a Constituição fala em direito à propriedade, é verdade, que todos também têm. Mas há a ressalva do respeito à sua função social.

No sábado, os moradores foram dormir mais sossegados, com a promessa de um possível acordo entre o governo federal – que compraria a área pelos 15 milhões com a proposta de que o governo estadual e a prefeitura investissem em infraestrutura. Havia também uma liminar da justiça federal que suspendia a invasão policial. Mas aí veio o ataque-surpresa. Foram acordados pelo barulho das bombas, dos tiros e da gritaria. O “acordo” foi ignorado. A justiça, numa contra-ordem, mandou invadir. A tropa de choque já estava preparada. Era madrugada. Tudo virou fumaça.

E assim o Pinheirinho, antiga parte do Campo dos Alemães, mais parece um enclave policial no território nacional.

* Rose Nogueira é jornalista, secretária de Cultura e Comunicação do Sindicatos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo e Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo

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