do blog da Revista Espaço Acadêmico.
por José de Souza Martins*
Um pastor manda de Nova Iorque aos crentes de sua numerosa e obediente igreja evangélica recomendação para que votem na candidata oficial. Um bispo católico publica declaração recomendando aos fiéis que não votem nela. Um pastor de importante igreja protestante lança apelo para que os adeptos de sua igreja votem na candidata não-oficial. Um frade católico há muito declara que espera que a candidata oficial ganhe a eleição e que a oposição nunca mais retorne ao poder. Se é para a oposição nunca mais voltar ao poder, não se trata de eleição e sim de nomeação. Estamos em face do eleitor oculto, o das religiões, que vota corporativamente e sem liberdade, por motivos religiosos e não por motivos políticos.
A questão política como questão religiosa, no Brasil, se propõe desde a Proclamação da República e da separação entre o Estado e a Igreja. Bispos e padres deixaram de ter status similar ao de funcionário público e a Igreja deixou de ter privilégios de repartição pública. O caráter missionário da atuação católica foi largamente beneficiado pela cessação da tutela, dando-lhe a oportunidade de, pela primeira vez em nosso país, fazê-la Igreja livre e profética.
A Igreja Católica, porém, aproveitou mal a possibilidade involuntariamente aberta pela República do ideário positivista dos militares que a proclamaram. Do mesmo modo, a democracia da pluralidade religiosa não consolidou essa premissa básica do Estado moderno entre nós, como se esperava e era necessário. Os protestantes e as outras denominações religiosas foram tímidos na consolidação da democracia nascente e na defesa do Estado não-confessional.
Politicamente marginalizada durante toda a República Velha, que era de inspiração positivista e anticlerical, preparou-se a Igreja nesse período para a Restauração Católica, fundada num ideário de direita e em valores da tradição conservadora. Significativamente, e por isso mesmo, lograria o status de “religião da maioria do povo brasileiro” no governo Vargas. Um intercâmbio claramente informado pelo populismo que nascia. O protestantismo se difundiu devagar, à margem da política e do poder, pesando sobre ele o informal veto católico. Poucos notaram, até, que um presbiteriano, Café Filho, sendo vice de Getúlio Vargas, assumira a Presidência da República com o suicídio do presidente em 1954. Era a via silenciosa da ascensão política dos protestantes.
O golpe militar de 1964 teve a decisiva participação católica com as Marchas da Família com Deus pela Liberdade. No entanto, um fato insólito se passou, revelador das grandes mudanças sociais que haviam ocorrido no País: diversos protestantes, especialmente presbiterianos, ascenderam em diferentes momentos do regime aos governos dos Estados, no Rio de Janeiro, em Pernambuco, no Pará, na Guanabara e mesmo em São Paulo, indiretamente, quando Laudo Natel, ligado ao Bradesco, de Amador Aguiar, presbiteriano, assumiu o governo com a cassação de Adhemar de Barros e nomeou um secretariado com notória presença protestante. A escolha do luterano Ernesto Geisel para a Presidência da República confirmou essa tendência do regime militar. A mudança de orientação da Igreja Católica em relação à ditadura, cuja instauração apoiara, e a hostilidade entre o Estado e a Igreja, nesse período, ganham clareza nesse cenário de fundo religioso.
É nesse quadro adverso e na consequente repressão que alcançou setores engajados da Igreja, até mesmo bispos, que sua atuação política evoluiu na direção do estímulo aos movimentos populares, a ação política orientada contra as incongruências do Estado, sobretudo o descompasso entre o legalmente possível e o politicamente realizado. Nesse legalismo antagônico ao Estado autoritário, os setores mais ativos da Igreja não tiveram outra alternativa para afirmação dos seus valores conservadores, dado que o espaço político de direita, de sua atuação mais coerente, fora bloqueado pela tendência anticlerical dos militares e capturado pelos evangélicos. Sobrou-lhes constituírem sua militância no espaço residual de oposição à ditadura. O rapto ideológico do vocabulário de esquerda deu um revestimento moderno ao programa conservador e nem por isso menos transformador de que a Igreja no Brasil se tornou protagonista.
Nem os católicos nem os evangélicos conseguiram formular uma concepção democrática de política, no sentido de resguardar as respectivas religiões contra o monolitismo ideológico a que tende a política partidária. Não conseguiram propor suas religiões, na política, como religiões universais e pluralistas, irredutíveis ao partidário. O que possa lhes parecer um êxito político-partidário, nestas eleições e em outras precedentes, é na verdade um fracasso religioso, sobretudo no fato de que tendo se proposto como instrumentos do aparelhamento religioso-ideológico do Estado, tornam-se inversamente aparelhos da política e do próprio Estado. No altar das ambições de poder de sua guerra santa, sacrificam a missão profética das igrejas e minimizam a grande função histórica e libertadora que poderiam e deveriam ter na miséria moral e política da sociedade contemporânea.
* JOSÉ DE SOUZA MARTINS é Professor Emérito da Universidade de São Paulo. Dentre outros livros, autor de O Poder do Atraso, Hucitec, São Paulo, 1999; e A Sociedade Vista do Abismo, Vozes, Petrópolis, 2010.. Publicado em O Estado de S. Paulo [Caderno Aliás, A Semana Revista], domingo, 3 de outubro de 2010, p. J6.
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