Jarbas Oliveira/Folhapress
Médicos cubanos são hostilizados pelos colegas brasileiros em Fortaleza.
Veio de um usuário do Twitter um dos melhores
comentários feitos até agora sobre a gritaria em torno da entrada dos
médicos estrangeiros (leia-se cubanos) ao Brasil. “Médico estrangeiro é
populismo. Tem que voltar a política de deixar morrer”. (Módulo ironia
off)
Populismo, oportunismo, escravidão (?). Enquanto médicos,
fariseus e doutores da lei tentam filtrar os mosquitos, uma fila de
camelos é engolida nos rincões fora da rota turística do País. Em outras
palavras, as pessoas seguem morrendo, sem que mereçam um franzir de
testa de quem parece disposto a armar uma Intifada contra o programa
Mais Médicos.
Segundo mapeamento do governo, existem hoje 701 cidades no País sem
um único médico a postos. Sabe quantos brasileiros demonstraram, em
chamada recente, interesse em trabalhar nesses locais? Zero. Nesses
lugares, falta o básico do básico, conforme mostrou o repórter Gabriel
Bonis em sua visita a Sítio do Quinto, município do interior baiano onde
a população não tem para onde correr em caso de emergência (o caso mais
simbólico foi a morte, testemunhada por uma técnica em enfermagem e um
vigia, de um homem que levou uma facada e não pôde ser atendido porque
não havia médico de plantão). Não estamos falando de cirurgia de alta
complexidade, mas de carência humana, cuja atuação garantiria o
tratamentos mínimo para problemas mínimos como diarreia, gripe ou
ferimentos leves, que neste diapasão de interesses e serviços se
transformam em tragédias diárias e desproporcionais.
Tragédias que parecem não comover quem, de antemão, diz se sentir
envergonhado pela leva de navios negreiros (oi?) a aportar por aqui
atolados de médicos dispostos a nivelar por baixo a medicina brasileira.
Pois Jean Marie Le-Pen, o líder ultradireitista francês de xenofobia
desavergonhada, seria capaz de corar ao ver a reação dos médicos
brasileiros, de maioria branca, que hostilizaram, vaiaram e chamaram de
“escravos” os colegas cubanos, de maioria negra, durante um curso de
preparação em Fortaleza. O protesto, organizado pelo Sindicato dos
Médicos do Ceará, foi talvez o estágio mais alto de uma ofensiva que já
teve até presidente de conselho regional de medicina pregando, como num
culto, o boicote aos camaradas estrangeiros. Os manifestantes, que
provavelmente se divertem ainda hoje com a herança colonial supostamente
encerrada por uma lei - não coincidentemente - denominada Áurea, talvez
inovassem a rebelião contra o estado das coisas no período anterior a
1888. O método consiste em cuspir no escravo para manifestar uma repulsa
fajuta à escravatura. Parece um método bastante inteligente para quem
levou seis anos para retirar o diploma. Não cola.
O episódio mostra que até mesmo quando se trata de salvar a vida
humana a vida humana é contagiada pela mais devastadora das doenças: a
ignorância de quem enxerga o mundo entre o certo e o errado e nada mais
entre uma ponta e outra. A ignorância, neste caso, parece desnudar um
resquício de desumanidade presente em um dos últimos bolsões de um
elitismo pré-colonial. Um elitismo que tolera o esquecimento e a
omissão, mas esperneia ao menor sinal de desprestígio, este galgado
longe, bem longe, dos salões onde mais se precisa de médicos: onde o
jaleco se suja de terra.
A opção de ficar nos grandes centros é, de certo modo, compreensível.
Não se discute as fragilidades de um programa de emergência. Seria
pouco razoável, por exemplo, negar a ausência de uma estrutura adequada
para a atuação de quaisquer médicos pelo interior do País. Seria pouco
razoável também negar a dificuldade para amarrar juridicamente um
contrato de trabalho que prevê a triangulação entre países (um deles,
bem pouco afeito à transparência) para remunerar o trabalhador. Não se
nega ainda a necessidade de se regular a atuação desse médico conforme o
tamanho de sua responsabilidade. Não se discute a necessidade de se
validar diplomas com base em um critério honesto que não tenha como
finalidade a reserva de mercado. Da mesma forma, seria razoável (ou
deveria ser) supor que a urgência para a garantia de atendimento básico
preceda os ajustes de rota – estes facilmente remediados com boa
vontade, o que não é o caso de uma vida por um fio.
Mas, para boa parte dos ativistas de ocasião, cruzar os braços diante
da suposta politicagem, do suposto populismo, do suposto oportunismo e
do suposto navio negreiro é mais nobre do que atacar o problema real.
Parecem a versão remodelada da conferência das aranhas do conto A Sereníssima República,
de Machado de Assis, a mais perfeita alegoria de nossa incompetência
histórica. “Uns entendem que a aranha deve fazer as teias com fios
retos, é o partido retilíneo; outros pensam, ao contrário, que as teias
devem ser trabalhadas com fios curvos, - é o partido curvilíneo. Há
ainda um terceiro partido, misto e central, com este postulado: as teias
devem ser urdidas de fios retos e fios curvos; é o partido
reto-curvilíneo; e finalmente, uma quarta divisão política, o partido
anti-reto-curvilíneo, que fez tábua rasa de todos os princípios
litigantes, e propõe o uso de umas teias urdidas de ar, obra
transparente e leve, em que não há linhas de espécie alguma”.
Nessa conferência, a discussão gira em torno dos símbolos atribuídos a
uma mesma teia. O imobilismo é o único resultado da gritaria.
Como as aranhas de Machado de Assis, preferimos discutir o sexo dos
anjos em vez de atingir o cerne de uma questão urgente: o abandono de
uma parte considerável da população. Seria razoável que elas estivessem
no centro do debate. Mas a razoabilidade é um objeto raro quando a ala
(sempre em tese) mais esclarecida do País tem como um cartão de visita a
vaia, a arrogância e a agressão.