'Golpe no Brasil é parte do projeto de recolonização da A. Latina', diz prêmio Nobel da Paz Pérez Esquivel - Opera Mundi
'Projeto tem alguns objetivos estratégicos:
controle dos recursos naturais e, como já disse Michel Temer, a
privatização das empresas estatais. Esse é o objetivo do golpe de
Estado', afirma ativista argentino
“O que está acontecendo no Brasil tem a ver com o projeto de
recolonização do continente. Esse projeto tem alguns objetivos
estratégicos: o controle dos nossos recursos naturais e, como já disse
Michel Temer, a privatização das empresas estatais. Esse é o objetivo do
golpe de Estado”, afirma o arquiteto e ativista argentino Adolfo Pérez
Esquivel, Nobel da Paz em 1980, em entrevista ao site Sul21, para quem todo o processo é capitaneado pelos Estados Unidos.
Na última semana, ele precisou falar apenas um minuto no Senado
brasileiro para sentir de perto a fúria da oposição que busca derrubar a
presidente Dilma Rousseff. Após utilizar a palavra “golpe” para definir
o que está acontecendo hoje no Brasil, a oposição exigiu do senador
Paulo Paim (PT-RS), que presidia a sessão, a retirada da palavra dos
anais da sessão, demanda que acabou atendida. “Não falei mais de um
minuto. Eles me pediram para que eu fizesse uma saudação e eu expliquei
por que estava aqui no Brasil, para apoiar a democracia, a continuidade
constitucional e evitar a consumação de um golpe de Estado”, diz.
Agência Brasil
Esquivel foi preso duas vezes pela ditadura militar brasileira, que durou de 1964 a 1985
Esquivel foi preso duas vezes pela ditadura militar brasileira, que durou de 1964 a 1985
O argentino manifestou surpresa pelo fato de o processo — que ocorreu
em Honduras, com a derrubada de Manuel Zelaya em 2009, e depois no
Paraguai, contra o governo de Fernando Lugo em 2012 — estar ocorrendo
Brasil. “É o mesmo procedimento dos ensaios realizados anteriormente: o
uso massivo dos meios de comunicação para alimentar um processo de
desprestígio por meio de uma série de acusações, a cumplicidade de
alguns juízes, como é o exemplo de Sérgio Moro”, afirma o prêmio Nobel.
Como o senhor avalia a situação política que o Brasil vive
hoje, em especial a tentativa de derrubada do governo da presidente
Dilma Rousseff?
Pelo trabalho que realizo, sempre olho para a realidade de um país da
América Latina sob a perspectiva de uma visão continental. Não há
casualidades em tudo o que está acontecendo agora contra o governo de
Dilma. Isso faz parte de um projeto de recolonização continental. Já
houve experiências piloto no continente que devem ser lembradas. A
metodologia é a mesma. O que aconteceu em Honduras, com a derrubada de
Manuel Zelaya, e depois no Paraguai, contra o governo de Fernando Lugo,
foram ensaios de golpes de Estado de um novo tipo. Golpes de Estado que
não precisam dos Exércitos. Basta ter os meios de comunicação, alguns
juízes e dirigentes políticos da oposição para provocar a
desestabilização de um governo.
O que me assombra é que tenham escolhido o Brasil, um país líder no
continente, para aplicar esse modelo de golpe. É o mesmo procedimento
dos ensaios realizados anteriormente: o uso massivo dos meios de
comunicação para alimentar um processo de desprestígio por meio de uma
série de acusações, a cumplicidade de alguns juízes, como é o exemplo de
Sérgio Moro, que chegou a vazar escutas telefônicas privadas envolvendo
o ex-presidente Lula e a própria presidente da República. O que Dilma
fez de errado, afinal, para justificar um impeachment? Ela utilizou
procedimentos que outros governos anteriores também aplicaram e não
sofreram nenhum tipo de sanção por isso. Contra Dilma, bastou isso para
justificar um pedido de impeachment. Isso é, abertamente, um golpe de
Estado brando. Há alguns dias, disse isso no Senado brasileiro e houve
um escândalo. Não falei mais de um minuto…
E pediram para retirar a palavra “golpe” das atas do Senado relativas ao seu pronunciamento…
Sim. Eles me pediram para que eu fizesse uma saudação e eu expliquei
por que estava aqui no Brasil, para apoiar a democracia, a continuidade
constitucional e evitar a consumação de um golpe de Estado. Bastou isso
para provocar uma situação conflitiva. Mas é preciso fazer uma leitura
mais profunda sobre o que está acontecendo no Brasil. Essa leitura para
além da superfície tem a ver com o projeto em curso de recolonização do
continente. Esse projeto tem alguns objetivos estratégicos: o controle
dos nossos recursos naturais e, como já disse Michel Temer, a
privatização das empresas estatais. Esse é o objetivo do golpe de
Estado. Caso ele se consume, o país terá um governo que não foi eleito
pelo povo, que ficará marginalizado da ação democrática. Como ocorreu em
Honduras e no Paraguai, isso terá como consequência uma forte repressão
aos movimentos sociais. Essa é a lógica da imposição de uma política
regressiva: provocar situações de conflitos sociais e usar a forma
repressiva para conter esses conflitos. Já há uma lei antiterrorista
aprovada pelo Congresso, como aconteceu em quase todos os países.
Roberto Stuckert Filho/ PR
'Sempre há saídas e possibilidades de mudança, desde que o povo se una. Mas, na América Latina, as esquerdas estão divididas', diz Esquivel
'Sempre há saídas e possibilidades de mudança, desde que o povo se una. Mas, na América Latina, as esquerdas estão divididas', diz Esquivel
Há uma diferença entre o que está acontecendo no Brasil e o que vemos
hoje na Argentina, onde a direita chegou ao governo por meio de eleições
livres. Ganhou por muito pouco, mas ganhou e está legitimada pelo voto.
Nos primeiros quatro meses de governo, Macri levantou impostos que eram
cobrados de empresas mineradoras e de latifundiários, entre outras
medidas. O Observatório Social da Universidade Católica argentina
registrou que, neste período, o país já tem um milhão e quatrocentos mil
de pobres a mais e cem mil desempregados a mais. Isso em quatro meses
apenas.
Na sua avaliação, esse projeto de recolonização tem os Estados Unidos como centro de origem e de articulação?
Sim, é uma política dos Estados Unidos, que nunca abriu mão de seu
objetivo de ter a América Latina como seu quintal. A política
norte-americana nos golpes em Honduras e no Paraguai ficou muito clara. É
preciso ter em mente que os Estados Unidos e também a Europa estão
esgotando seus recursos e necessitam dos recursos naturais de nossos
países, incluindo recursos minerais estratégicos e os recursos do
Aquífero Guarani, uma das grandes reservas mundiais de água, um bem cada
vez mais escasso. Então, não são pequenos os interesses dos Estados
Unidos na região. Não é por outra razão que eles mantém bases militares
na América Latina.
Se olharmos para a história recente da América Latina, houve outras
tentativas de golpe de Estado no Equador, na Bolívia e na Venezuela que
vive uma situação crítica, onde a posição ganhou o Parlamento e o
governo de Nicolas Maduro está muito debilitado, com graves problemas
econômicos, fundamentalmente causados pela queda do preço do petróleo,
base da economia venezuelana. Então, as tentativas de golpe de Estado na
América Latina não terminaram. Houve algumas muito violentas, com
muitas mortes, como a que ocorreu no massacre de Pando,
na Bolívia. No Equador, tivemos uma tentativa de golpe disfarçada de
uma mobilização salarial da polícia. Era uma tentativa de golpe de
Estado contra Rafael Correa. Esse é o panorama que temos hoje na região.
Teríamos que falar ainda de Haiti, Guatemala, El Salvador e Honduras
onde ocorreu uma repressão brutal, com mortes como a de Berta Cáceres, uma dirigente do povo Lenca com a qual trabalhamos em Honduras.
Voltando um pouco à situação da Argentina, nos primeiros meses
do governo Macri houve também um aumento da repressão aos movimentos
sociais e um dos principais símbolos disso foi a prisão de Milagro Sala.
Qual é o cenário atual desse quadro de repressão e violação de
direitos?
Milagro Sala
é uma presa política. Ela foi presa por conta de um protesto social
organizado por cooperativas e pelo grupo Tupac Amaru. Nós fomos
visitá-la na prisão, na província de Jujuy, cerca de 1.500 quilômetros
de Buenos Aires. Falamos também com o governador de Jujuy, Ruben Gerardo
Morales. Após a prisão de Milagro Sala começaram a surgir uma série de
outras acusações contra ela, envolvendo denúncias de corrupção e outras
coisas. Mas ela foi condenada antes de ser julgada. Ela é uma presa
política já há quatro meses e nós cobramos isso do governador. Houve
também uma forte repressão policial em Buenos Aires e em outros lugares
contra protestos de trabalhadores. O governo Macri vai avançando em suas
políticas neoliberais. Até agora, não falou abertamente sobre isso, mas
planeja a privatização de empresas do Estado.
Macri também está fazendo um acordo com os fundos abutres para o
pagamento de uma dívida externa imoral e ilegítima. Aí temos um problema
que vem dos governos anteriores que não fizeram uma auditoria para
determinar o que é dívida legítima e o que não é. Agora, Macri necessita
de recursos para enfrentar a situação do país e está tentando obter
empréstimos com altas taxas de juro. Os orçamentos para educação e
políticas sociais sofreram grandes cortes e as obras do Estado estão
paralisadas. As universidades também sofreram um drástico corte
orçamentário. De modo geral, elas têm recursos para pagar os salários do
mês de junho e depois não se sabe como será.
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Diante desse cenário de avanço conservador, qual é, na sua
opinião, a capacidade de reação dos movimentos sociais e do movimento
sindical na Argentina, no Brasil e em outros países da América Latina?
Há força suficiente para resistir a esse projeto de recolonização?
Os movimentos sociais estão muito fragmentados e isso os coloca em uma
forte situação de debilidade. Não há coesão ou força integradora entre
eles. No caso da Argentina e de outros países da América Latina, a
política de direitos humanos também enfrenta sérias dificuldades já há
algum tempo. Esse projeto de recolonização terá um impacto negativo
muito grande para a população, especialmente para os setores mais
carentes. Há uma cláusula democrática dentro de organismos regionais
como Mercosul e Unasul, que já foi aplicada ao Paraguai por ocasião do
golpe contra Lugo. O Paraguai foi suspenso desses blocos regionais. Não
sei se isso vai acontecer com o Brasil. Se, do golpe, surgir um governo
Temer penso que ele terá o reconhecimento ao menos dos Estados Unidos e
da Argentina. Na Argentina, o governo Macri está rechaçando os acordos
regionais.
Aqui no Brasil, estamos assistindo à emergência de grupos de
direita e mesmo de extrema direita, com traços fascistas, que contam
inclusive com representação parlamentar como é o caso do deputado
Bolsonaro que, recentemente, voltou a fazer apologia de torturadores.
Esse fenômeno também está ocorrendo na Argentina ou em outros países da
região? Até que ponto, essa emergência preocupa?
Na Argentina, isso não é muito evidente. Houve editoriais apoiando a ditadura, como o publicado pelo jornal La Nación no
dia seguinte à posse de Macri, defendendo a libertação de militares
condenados por crimes na ditadura. Há grupos de direita, mas, neste
momento, como estão praticamente no governo, não se manifestam
publicamente. Isso não significa que não existam. Aqui no Brasil me
chama muito a atenção o fato de um deputado ter feito a defesa de um torturador.
Isso é a apologia de um crime, um delito. Não sei como vão tratar isso,
pois os deputados têm foro privilegiado. A questão importante é se
haverá unidade dos movimentos sociais e populares para enfrentar essa
situação.
O senhor acompanha a situação dos direitos humanos na América
Latina há muitos anos. Após um ciclo de ditaduras houve um período de
redemocratização e uma ascensão de governos de esquerda e progressistas
na região. Agora, parece que estamos entrando mais uma vez em um período
conservador com regressão no campo dos direitos. Parece que parcelas
importantes das sociedades latino-americanas abrem mão muito facilmente
de direitos. Como avalia a situação atual após um período em que
ocorreram importantes avanços na área dos direitos humanos e sociais?
Neste último período, nós acompanhamos com preocupação a situação dos
direitos humanos mesmo em governos democráticos. Há governos que não têm
políticas repressivas, mas há como que uma base já institucionalizada.
Em muitos países, as torturas em prisões e delegacias de polícia, por
exemplo, continuam até o dia de hoje. Na Argentina, esse problema é
tremendo. Nós fizemos um trabalho de monitoramento da situação em
prisões e delegacias. No ano passado registramos mais de 100 mil casos
de tortura em 50 instituições penitenciárias. Não são políticas de
Estado, mas sim mecanismos e práticas que seguiram vivas nas forças de
segurança e que seguem vigentes.
Os direitos humanos seguem sendo violados porque há impunidade
jurídica. Quem viola os direitos humanos sempre é o Estado. Fora disso,
há os delitos que devem ser enquadrados na legislação vigente. A
situação dos direitos humanos, considerados em sua integralidade, é
preocupante em muitos países. Não estou falando apenas de torturas ou
mortes, mas também de problemas ambientais, dos agrotóxicos, do impacto
das grandes mineradoras. Há casos como o do Chile, onde a lei antiterrorista foi aplicada contra o povo mapuche.
Guilherme Santos/Sul21
'Os Estados Unidos e também a Europa estão esgotando seus recursos e necessitam dos recursos naturais de nossos países', ressalta
'Os Estados Unidos e também a Europa estão esgotando seus recursos e necessitam dos recursos naturais de nossos países', ressalta
Direitos humanos e democracia são valores indivisíveis. Se os direitos
humanos são violados, a democracia se debilita. Estamos trabalhando para
tentar uma mudança de comportamento e de mentalidade, mas há muitas
consciências armadas com práticas repressivas. Antes de vir ao Brasil,
estivemos no México, país que tem mais desaparecidos que a Argentina na
época da ditadura, com governos constitucionais. Em Cidade Juarez, até
sairmos de lá, havia a marca de 1.500 mulheres assassinadas por feminicídios. Estamos falando da fronteira com os Estados Unidos. No estado de Guerrero, temos o caso dos 43 estudantes que desapareceram e
sobre os quais não há notícia até hoje. Passou um ano e meio e não se
sabe absolutamente nada do paradeiro de 43 estudantes. Não estamos
falando de uma ditadura.
No México, nos reunimos com o presidente da Comissão Nacional de
Direitos Humanos e ele nos relatou as muitas dificuldades enfrentadas
para avançar nas investigações sobre casos de violações de direitos
naquele país. Há uma situação de terror muito grande. Tanto é assim que o
governo dos Estados Unidos emitiu um comunicado recomendando aos
turistas norte-americanos para que não viajem ao estado de Guerrero, em
especial para Acapulco. Estivemos em Acapulco e os hotéis estão vazios.
Claro que, no caso do México, penetrou com muita força o problema da
droga, dos carteis do narcotráfico. Uma coisa que nós podemos comprovar
na América Latina é que as guerras, hoje, são financiadas com a droga.
Isso está acontecendo agora no Oriente Médio também. As guerras têm que
ser financiadas de algum modo e estão sendo pelas drogas. Por isso, elas
não vão desaparecer tão facilmente assim. O narcotráfico está
desempenhando um papel sumamente importante hoje na economia das
guerras.
Então, quando falamos da realidade da América Latina hoje supomos que
todos os governos são democráticos, mas isso não é assim. Veja o caso da
Colômbia também, onde agora está prestes a ser assinado um acordo de paz com as FARC [Forças
Armadas Revolucionárias da Colômbia]. Mas o problema da Colômbia não se
resume à relação entre as FARC e o governo de Santos. São quase 60 anos
de guerrilha, mas também de narcotráfico, de grupos paramilitares e
parapoliciais. O panorama do continente é muito complexo.
O senhor está pessimista em relação ao futuro?
Eu sempre digo que sou um pessimista esperançoso. Eu não penso que não
há saída para todos esses problemas. Sempre há saídas e possibilidades
de mudança, desde que o povo se una. Na América Latina, as esquerdas
estão divididas. A direita tem dificuldades, mas não está dividida
porque tem objetivos claros. Mas as esquerdas estão muito divididas na
Argentina, no Brasil, em qualquer país. Assim, é difícil construir
frentes que possam oferecer alternativas a essa situação da qual
falamos. Se o golpe se consumar aqui no Brasil o que vai ocorrer com a
população… Estamos aqui acompanhados de movimentos sociais e de grupos
comprometidos com a defesa da democracia, mas qual é a força real que
têm?
O que me preocupa, no caso do Brasil, são as possíveis repercussões em
todo o continente e no mundo inteiro. O Brasil é um país líder, com uma
presença importante não só na América Latina. Para mim, com tudo o que
escutei nestes dias, me parece que o afastamento de Dilma já é
praticamente um fato consumado, a não ser que, de última hora, a
situação atual possa ser revertida. Mas não é para se desesperar. Sempre
há possibilidades de mudanças. O fato é que os Estados Unidos seguem
trabalhando pela recolonização da região pois necessitam dos recursos
deste continente.
Já devastaram a África, que não é um continente pobre, mas é um
continente empobrecido. A África tem grandes recursos que estão sendo
explorados por grandes corporações. Eu participei de uma comissão de
investigação sobre a África do Sul e a Namíbia. Durante os oito meses
que durou a comissão creio que não dormi em função do que vi, os
indicadores de pobreza, o saqueio sem piedade dos recursos destes
países. Levamos o resultado dessa investigação à Assembleia Geral das
Nações Unidas, onde foram aprovadas sanções que não foram cumpridas.
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Publicado originalmente pelo Sul 21
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