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domingo, 22 de maio de 2016

Conheça os currais humanos no Ceará. Uma história apagada.


  ( ) O drama da seca é foco do filme “Lágrimas de Vela”, de Flávio Alves, em fase de finalização
01:41 · 28.02.2008


As ruínas de uma antiga vila operária em Senador Pompeu, no sertão cearense, são testemunhas de um dos momentos mais dramáticos de nossa história. O local abrigou um dos sete campos de concentração mantidos no Estado, pelo governo federal, para confinar flagelados da seca de 1932. A prática - já utilizada na estiagem de 1915 - visava evitar invasões e saques nas cidades, mesmo que isso custasse a vida de muitos “mulambentos” presos nos “currais do governo”, vigiados por soldados e mantidos com uma pequena ração a base de farinha. Uma realidade sub-humana, que fazia da morte uma rotina diária. E que fazia da fome e das epidemias companheiras permanentes.

Os 12 casarões da antiga vila -erguidos em 1919 para abrigar operários e engenheiros ingleses que trabalhavam na construção de um açude na região e depois utilizados como sede do campo de concentração de Senador Pompeu - servem, agora, de cenário para o filme “Lágrimas de Vela”, de Flávio Alves. O cineasta vem pesquisando há mais dez anos o drama dos cearenses nos campos de concentração instalados durante a seca de 1932, visitando os locais onde foram montados os “currais”, conversando com os sobreviventes e também usando atores para reconstituir este pedaço da nossa história que ainda é ignorado pela maioria dos brasileiros.

O projeto de “Lágrimas de Vela” tem como embrião um filme anterior do cineasta, “Serca Seca”. “Comecei a fazer este filme em 1996, sem nenhum recurso. Fui em frente assim mesmo, queria preservar a história dos sobreviventes do campo de concentração de Senador Pompeu, mostrar aquela realidade muito louca e ainda desconhecida. Fui como o Glauber Rocha, com uma câmara na mão e uma idéia na cabeça e o resultado foi um filme experimental, que ficou pronto em 1998”, recorda. O filme, apesar de experimental, circulou por vários festivais, incluindo os de Brasília e Havana, chegando a ser premiado num festival baiano.

Para seu novo filme, Flávio Alves conta com mais recursos, estrutura e experiência. Só que o desafio é maior. Agora, ele quer mostrar o drama vivido pelos cearenses nos sete campos de concentração instalados no Estado em 1932. Além de Senador Pompeu, foram criados “currais do governo” em Ipu, Quixeramobim, Cariús, Crato e Fortaleza - a capital abrigou dois campos. “Todos precisam saber o que aconteceu nestes lugares, onde as pessoas eram confinadas como animais. Quem entrava não podia sair. Todos tinham a cabeça raspada, vestiam roupas feitas de saco de açúcar, passavam muita fome e eram controlados por senhas. As pessoas não tinham nomes, tinham números”, lamenta.

Registros da época

O roteiro de “Lágrimas de Vela” está entre os selecionados do quinto edital da Secult. “Inicialmente, o projeto previa um curta, mas as pesquisas e os materiais recolhidos são tão valiosos que me levaram a transformá-lo num longa”, explica. Em sua pesquisa, o cineasta conseguiu depoimentos de quem viveu o drama dos campos de concentração e teve acesso a jornais e fotos da época. “Também conseguimos muitas imagens daquele período, que estão sendo compradas do Museu Nacional em Brasília”, conta. Segundo o diretor, a existência dos casarões de Senador Pompeu, embora em estado de abandono, também foi muito importante para a construção do filme e a reconstituição dos fatos.

“Lágrimas de Vela” deve ficar pronto em outubro. Mas, antes de chegar às telas, já vem despertando muito interesse pelo país. Em março, Flávio Alves é um dos convidados da mostra de cinema de uma universidade de Sorocaba (SP), onde vai debater o tema dos campos de concentração, antecipar um pouco do que será mostrado em seu novo filme e promover a exibição de “Serca Seca” - algumas imagens desta produção foram aproveitadas na confecção de “Lágrimas de Vela”. Ainda em março, “Serca Seca” também será exibido em São Paulo, na Praça da Sé, no centro da capital paulista.

“Nosso objetivo é popularizar a história dos campos de concentração cearenses. Com ‘Lágrimas de Vela’, a idéia é fazer com que o filme também chegue às escolas, que seja visto pelos estudantes deste imenso país. A estréia do novo filme de Flávio Alves fica para 2009, quando deve entrar na programação do Cine Ceará, iniciando o circuito dos festivais. “Vai ser um momento de grande felicidade para mim. Trabalhei muito para realizar esta produção. Também contei com o apoio do cineasta Rosemberg Cariry, do Kim (diretor de fotografia) e do Gledson Brito (assistente de produção). Felizmente, tem muita gente apostando nesta idéia”.

Depois de concluir e divulgar o filme, Flávio Alves já tem um novo desafio: trabalhar para preservar os 12 casarões que faziam parte do campo de concentração de Senador Pompeu. “Os casarões, que estão sob a jurisdição do Dnocs, estão abandonados. E precisam ser recuperados o mais rápido possível. O espaço pode ser transformado num centro cultural, num teatro e até em abrigos para estudantes. Só não podemos deixá-los se acabarem com o tempo. Parte de nossa história está lá, naqueles casarões”.

FIQUE POR DENTRO

Campos de concentração foram restritos ao Ceará

Os registros mais confiáveis sobre os ´currais do governo´, como os confinamentos eram denominados pelos flagelados, são encontrados no livro ´Campos de concentração no Ceará´ (Edição Outras Histórias / Museu do Ceará, 2000, 120 páginas, R$ 6,00), de Kênia Rios. Segundo a autora, não existem referências de que a experiência tenha sido repetida em outros estados. O primeiro campo, conforme Rios, surgiu em 1915, instalado no bairro alagadiço. Mais tarde, na seca de 1932, os campos foram ressuscitados como política do governo federal.

´Do ponto de vista oficial, os campos aparecem como medida de assistência aos flagelados que não tinham trabalho nas frentes de serviço´, diz a autora. Mas a realidade, segundo ela, era outra. ´Os famintos eram atraídos com a promessa de comida, assistência médica e segurança. Lá não encontravam a estrutura prometida e não podiam sair do campo, sendo mantidos presos. Tudo para evitar que Fortaleza fosse invadida por famintos´, comenta Rios.

A capital foi a única cidade a receber dois ´currais´, um no Otávio Bonfim e outro no Pirambu, este conhecido como Campo do Urubu. O maior campo do Estado estava instalado em Buriti, distrito do Crato. ´Pelos registros oficiais, passaram por lá 65 mil pessoas em 1932´, informa. Ela diz que alguns campos, projetados para receber duas mil pessoas, chegavam a manter até 18 mil flagelados de uma só vez. A fome e a insalubridade dos campos levaram, inevitavelmente, a milhares de mortes. ´Os livros de óbitos das igrejas mostram que 90% das mortes registradas naquele período aconteciam nos campos de concentração.´

No ´curral´ de Ipu, segundo Rios, a média era de sete a oito mortes por dia. Depois de 1932, a experiência dos campos foi abandonada no Ceará. ´Houve muita polêmica em torno desta experiência. Também tinha o estigma dos campos de concentração nazistas. Por isso, nos anos 40, 50 e 60, o governo adotou outra prática, criando abrigos que foram batizados de albergues, onde os flagelados tinham mais apoio e liberdade.´

Délio Rocha
Repórter

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